08/10/2020

VinteVinte - 72 (farrapos escolhidos)


72.

 

DE PAQUETE A PARDAL

 

Coimbra, terça-feira, 2 de Junho de 2020

 

(...)

 

II

 

Na vastidão da tundra, os oito homens preparam-se para o Inverno, que é uma noite só & una directamente ligada à nocturna vastidão sideral. O mecânico é rigorosíssimo, não há ponta-solta que lhe resista. O médico é parrana, de boa pachorra que ilude, à primeira, o muito saber profissional. O geólogo é duro como o que estuda & silente como o que analisa. O informático vive em uma antárctida só dele, a dele por acaso contemporânea da Antárctida exterior que habitam. O paleontólogo adora whisky & poker & películas porno/8mm dos anos 70/XX, que filtra da internet à razão de duas por semana. O piloto gosta de jornais do século XIX, da internet também aproveita. O poeta faz de cozinheiro – ou este escreve versos, entre uma & outra refeição. O comandante provém de família meg’abastada – mas comanda por competência & direito próprios.

Eu cozinho, sim. Às nove da manhã, a sopa do dia está pronta. Lá fora, quase trinta graus. Passa a van dos ciganos feirantes. Qual antárctida qual porra. Mas sim,

Na vastidão da tundra, os sete (…)

 

III

 

Vinte e um anos depois da primeira (concluída na tarde de 29 de Abril de 1999, quinta-feira, no Louriçal), concluo hoje a segunda leitura integral de Jornal do Observador, do grande Vitorino Nemésio. Duas diferenças maiores existem entre nós dois: ele era deveras grande escritor, uma, & católico-praticante, outra. Sobre a primeira, nada a acrescentar: é franca evidência; quanto à segunda, duas coisas simples: sou agnóstico por ter alguns estudos que me elevam do primário-ateu; e não sou católico porque nunca obedeceria a uma religião em cujo culto só um é que bebe vinho. Pronto.

 

(...)

 

V

 

Uma pouca de gente de fim-de-dia vem a compras de última-hora aqui ao mini-super do bairro. A nefanda globalização tornou-nos idênticos. Ou clones. As mesmas coisas fazemos à mesma hora com a mesma cara pelos mesmos motivos para os mesmos fins. Renda a pagar até dia 8. Crianças-clones-de-crianças. Adolescentes mais phone do que smart. Adultos sem um livro, sequer um jornal, nas unhas. O presidente Marcelo mais ubíquo do que Nosso Senhor. Gente por modos pasteurizada. Falas estéreis, sem favo nem mel. Este é um milénio de trampa-bolsonara, por assim dizer. Menos comunicação pertinente quão mais tecnologia de infocomunicaçãomática, por assim dizer. Telenovelas, celebridades & novos-talentos: tudo lã-de-cão, merda tudo.


(...)

 

VI

 

Com os anos, os danos.

 

(Pronto, provérbio inventado mesm’agora.)

 

VII

 

Vê-se daqui a retaguarda do Cemitério da Conchada – urbanização perfeita do tipo habitação-horizontal. Dorme lá o meu Amigo Guilherme Pais. Dorme – digo eu. Digo mal porque eufemizo.

Mas estou com azar: perto (demasiado perto) da minha mesa, vozeiam dois energúmenos, um de pele preta, outro de pele-lixívia. Proferem frases merdosas a propósito de assuntos de caça. Fumaram daquilo-que-faz-rir, nota-se a léguas. (A léguas deveriam estar eles, não eu, que me sei comportar, sendo de platina a minha mudez.) Não tarda, volto para casa. Esperai! Alegria! Foram-se embora. Em lugar deles, surge no meu campo-óptico-lente-progressivo um delicioso pré-sexagenário de camisola cor-de-laranja, calção verde-rebuçado-mentol & sandalinha de napa fura-dedão. Ó coisa linda! Ó bijou-de-sua-vovó! Ei-lo smartphonando peregrinamente: nossa-senhora-atrás-nossa-senhora-à-frente. Coisa rica, de tão pobreca. Parece um anúncio a laranjada dos anos 60/XX, quando ainda se dizia laranjada em vez de sumo ou néctar. Quadris mínimos de cabrito. Unhas amarelentas, de padecente hepático-pulmonar. Barba de três dias, tipo capim esbranquiço. Cachucho & cordão de ouro-dos-ciganos. Mas olhai!, bebe à homem: ao balcão, café & brandy em balão grande, mam’ó!

Salva-me um pardal do entardenoitecer. Veio às migalhas da esplanada. Colhe o fruto caído – como eu tantas vezes tento o verso.

 

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Canzoada Assaltante