05/10/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 82


82. SEM FEIJÃO VERDE ESTA NOITE



Viagem Coimbra - Figueira da Foz – Coimbra, sábado, 2 de Outubro de 2010



Coimbra-A. Na plataforma da gare, uma pomba solitária. Bonita, um colo de mulher. Procuro algum pedaço de pão esquecido na bolsa exterior do saco. Só encontro umas míseras migalhas. Vou ao bufete da estação e compro um bolo de oitenta cêntimos. Vou-lhe atirando as partículas, que ela saúda com cabeçadas certeiras. Logo uma segunda (mais branca, mas senhoril por igual), uma terceira depois. Quando embarco na carruagem, são já cinco.
Estou de fuga da minha zona. O Calhabé e as áreas circundantes estão atrofiadas de um estrangulamento multitudinário: eu e muitos outros nativos (ouvi-os falar nO Nosso) já estamos fartos dos U2, dos camiões dos U2, dos fãs dos U2, dos seguranças dos U2. Os concertos são hoje e amanhã, mas o circo só deve estar desmontado lá para quarta-feira, com alguma sorte. Bom pretexto para ir arejar as ventas e os pulmões à Figueira, portanto. Cá vou.



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Sozinho nesta extremidade da carruagem, um livro nos joelhos, iço o olhar para beber o postal rápido do Mondego guardado de longe pela Torre da Universidade. E então os outros (poucos) rostos da carruagem voltam a parecer-me moedas, ao câmbio do silêncio.



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É inevitável: sempre que me apeio na Figueira da Foz, a vida demora nada a aplicar-me a cutilada da nostalgia. À esquina da Pensão Jacques com a Rua da República, sinto-me duas vezes só. Uma, porque deveras só em corpo. Duas, por não mais cirandar por aqui com a minha Mãe, a qual, ao n.º 36 (1.º e 2.º andares) da Rua Maestro David de Souza, decerto resolveria o jantar de nós dois com bife, ovo e feijão verde cozidos, vitualhas que ela, nos Julhos balneares de há quarenta anos, enriquecia de uma mirífica garrafa de laranjada.
A Figueira? É a luz ser do tamanho do oceano – e a ele cheirando, maresia de si mesma, em si mesma irmanação de aves marinhas & peixes volantes. Acutilado pela nostalgia, vermuto-me alguma coisa não longe da Manuel Fernandes Thomaz, passo o Café Nau, devasso o Jardim (onde acontece a Feira de Velharias) e acolho-me à Caçarola 1, onde redijo a tinta permanente um coração que vai permanecendo, enquanto a hora, a luz, o comboio e as cutiladas estiverem para isso.
Nada porém me custa já reconhecer à vida e à nostalgia a condição siamesa da pequena cabotagem: por algo se marejam os olhos.
E a amplidão branca da luz nas casas amarelas. E o vermelhão do Farol Velho sangrando a preto-e-branco no areal que antigamente chegava arriba, não já, há tanto que já não.
Nos cenáculos, avinhados devidamente, os comedores merendam iguarias marinhas. O sábado acontece, areal ele também: plano e partícula do Temp(l)o-Oceano. No rosto, a América. Nas costas, a Ásia. A dez metros, um cão sem Schopenhauer nem pressa.



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E na Figueira, ao pré-aviso da Noite, percebo também, e tão bem, que as manhãs servem de anáforas ao poema do Tempo, ou,
como dizê-lo de outra maneira?,
de ânforas do barro do Tempo.



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Visão de um prédio de tão, mas tão, claro azul, que o céu se lhe funde, na óptica crepuscular. E, do porto comercial, o guindaste que metaforiza, do coração, o içar da recordação à cabeça, onde o cabelo cortado é maninho. Sinceramente. Figueira da Foz, Rua Vasco da Gama. Figueira, Travessa dos Banhos. Algum São Lourenço por aí? Alguma Ponte que Galante se mostre e seja? Outubro – e o Mar que arrefece casas e pontões.



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E depois é agora – o tempo no Tempo, o tempo em que se faz um papel destes, num destes cadernos – tudo Música: ou apenas música.



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Lojas que querem vender roupa de gente, mas há pouca quem compre, e quem compra é pouca e pouco – sonhos microempresariais de gente que, felizmente, não estudou. O sábado é sempre finissecular, venho do fundo dos domingos, que o mesmo é dizer amanhontens. Tantos ontens me dão música, que.



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Derivação cosmogónica pela Figueira, um sábado de Outubro: dois telefonemas, três talvez, falhados. As ruas por conta de um gajo, todas. Segurança: moedas num bolso, horário dos comboios no outro – Coimbra é lá em baixo: como a infância e o futuro.



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Uma amargura discreta e quase-doce: não voltarei a por estas ruas derivar com a minha Mãe de 1970. A mesma senda, mas a mesma não sendo, ela é Outra: e eu, com moedas, respondo e correspondo: derivo eu. É o cais um caos? Chego a Coimbra: recolheram-se as pombas.

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Canzoada Assaltante