09/10/2010

Ideário de Coimbra - podografias de retorno - 85 (1)

Jorge de Sena (Lisboa, 2 de Novembro de 1919 — Santa Bárbara, Califórnia, 4 de Junho de 1978)



85. ELA POR ELA

Coimbra, quarta-feira, 6 de Outubro de 2010

O dia amanheceu inglês – baço, de frio ar varredor, chuvoso. Eu, no entanto, estou protegido da intempérie porque colecciono relâmpagos, isto é, versos.
De Poesia de 26 Séculos, a preciosa antologia costurada por Jorge de Sena, estes (co)riscos:

1 – OMAR KHAYYAM (Pérsia, séc. XII)

O mundo imenso: grão de pó no espaço.
Toda a ciência humana só palavras.
As flores e os animais e os povos: sombras.
E teus profundos pensamentos: nada.

2 – DANTE ALIGHIERI (Itália, 1265-1321)

Tanto é gentil e tão honesto é o ar
da minha dama, quando aos mais saúda,
que toda a língua de tremor é muda,
e os olhos não se atrevem de a fitar.

E ela perpassa, ouvindo-se louvar,
vestida de humildade e tão sisuda,
que se diria que, do céu transmuda,
à terra veio milagres comprovar.

E é graciosa tanto a quem na mira
que dá dos olhos tal ternura ao seio,
que entendê-la não pode o que a não sente.

E é como se em seus lábios fora ardente
um espírito suave e de amor cheio
que, sem dizê-lo, às almas diz: – Suspira.

3 – SHAKESPEARE (Inglaterra, 1564-1616)

Porque escrevo eu sempre tão igual ao que era,
mantendo-me fiel ao que inventei,
que cada termo é como se dissera
quanto de mim procede, que o gerei?

*
(Intervalo para vos confessar quanto me agrada esta meteorologia ensimesmada e ensimesmadora, este ar-aquário, este vulcão pluvial, esta redoma maxiatural com uma cidade dentro, esta campânula que prologa e prolonga o pensassentimento de cada instante. Não é já, não, o alto Verão durante que brilho e milho rimam tanto a tão loura altura. É a voz do Inverno Outono adentro, é a homilia hidrófila da quarta-feira. E é estranhamente, também e ainda, a magia de rimarem melancolia e quase-alegria.)
*
(Prolongou-se-me o intervalo por causa do almoço – e do raro apetite por ele. E são já as 17h09m da quarta-feira. Aproveitei os momentos pós-prandiais para conceber e enviar para Santarém a crónica dO Ribatejo, blogcanilei a entrada 83 deste Ideário, não saí de casa rumo ao Atrium antes de atirar uma porção de água e um chocolate-miniatura para as entranhas. Conservei, não sei porquê, o talão – processado por computador – de compra do Cortázar. Na última linha, inscrevem-se hora e data. Com a hora, tudo bem: 15:57. Mas a data refocila-me as tripas: diz que foi no dia 10/09/30. Inevitavelmente, leio: 10 de Setembro de 1930, o que é uma quimera técnica, tanto para mim como o americanóide processador de facturas. I know, I know, tem de se ler ao contrário agora (por paradoxo, à árabe), da direita para a esquerda: 30 de Setembro de 2010. Raios partam a globalização e os US of A. Por isso é que ainda lhes dói o “nainilévãne”. Deveria roer-lhes era o (duplo) “elévãnáine”: porque o 11 de Setembro de 2001 foi muito menos, mas incomparavelmente menos, assassino do que o outro, o de 1973, no Chile, que eles, o zamericanos, instigaram, encomendaram, pagaram e benzeram ao porco-sujo dos pinochets. Dito isto, regressemos à beleza crestomatiada por Jorge de Sena:)

4 – ANGELUS SILESIUS (Alemanha, 1624-1677)

SEM PORQUÊ

Não há porquê da Rosa, é rosa porque é rosa:
Não cuida de ser vista, ou ser de si curiosa.

*
E, por hoje, stop na antologia da Antologia. Amanhã ou assim voltarei aos trechos luminosos que Sena tão porfiada, gentil e sabedoramente arrebanhou.
Agora, preparando-me para a investida/descida/ subida da Noite. O Nosso Café, 18h06m. Precavi-me de camisola e casaco para descer da Solum ao Calhabé, mas é de t-shirt encarnada (duas nódoas feias na barriga) que vigoro à terceira mesa direita de quem entra. Uma espécie de paz: apesar da hipoescassez de dinheiro, apesar de todos os raios que me partam, uma espécie de paz. Afinal, a República pode ter cem anos, mas eu tenho quase metade disso. Portanto.
Portanto, seguir (conseguir) tecendo a emulação da utopia consigo mesmo/a. Digo: concebendo sempre a outra margem (a terceira) do outro Rio: lá onde as ideias, os flashes, a coruscância, a esmeralda – lá onde tudo é possível/passível de ser dito. A Poesia? Pois por que não? Já é tão tarde para cursar anatomia patológica ou silvicultura silvestre ou taxidermia de criaturas volantes ou hidráulica do Mondego… (Olha, pus reticências! Olha, pus ponto de exclamação…)

2 comentários:

JPC disse...

Foi menos assassino porquê?

Daniel Abrunheiro disse...

Nem que seja pela comparação do n.º de mortos. Ou pela sistematização da tortura. Ou pelos anos que durou. Ou pelas gerações que devastou. E porque foi pago pelos americanos, os quais também financiaram um tal Bin Laden. Ah poizé.

Canzoada Assaltante