17/06/2007

Quatro Coisas de Ontem

Dezanove Tercetos Vivos

Não amo a minha vida.
A minha vida não me ama.
Deitamo-nos nus na mesma cama.

Tu vais morrer, minha Mãe?
Eu vou-te morrer, minha Mãe?
Para que me nasceste, Mãe?

Hoje é sábado, chove muito.
Duas bolas de vidro, os meus olhos.
A terra fuma nevoeiro frio.

O coração cheio de berlindes glaucos.
A minha vida lava de chuva o cabelo.
Tristeza e beleza de mãos dadas.

Chove tanto, o império de vidro.
Ruas dizem-me adeus.
Digo-lhes um frémito de cutelarias.

Repito as águas com o coração.
Alam-se-me rastos de terra.
Alpina-se-me de neve a cabeça.

Nem tudo é amor ou a morte.
Há outras palavras além da vida.
Molhamos as mãos em espelhos.

Um dia, a criança não te é.
Uma noite, procuras a criança.
Só o espelho encontras.

Gerânios, gladíolos, baías.
Meninas, meninos, mármores.
E olhos de chuva no chão.

Laranjeiras de cristal na madrugada.
O susto da alba no coração.
O coração da alba na alma.

É tão tecelã, a noite.
Tão fingida de manhã, a tecelã.
Aranhas crispam sua lua.

Palavras ondulam peixes.
Nadam na boca, as gajas.
Até versos ondulam.

Então a tua dor não treme aquários?
Arrefece a platina da memória, sim.
Tudo arrefece, o esquecimento até.

Isto um dia folha, diz a árvore.
Isto um dia falha, diz o amor.
Isto nunca, filha, Mãe.

O coração frita a própria lama.
Ele até troca as letras.
O coração frita a própria alma.

A Mãe dá a mão.
A Mãe dá a mão ao filho.
Mas o filho está no inverno.

O rio é vertical.
O espelho deita-se.
A sombra é um idioma.

Fui amado por um cão.
O amor dele é a mais elástica das minhas coisas.
O meu único rosto é o desse cão.

A vida do meu cão é a minha vida.
A vida da minha Mãe é a do meu cão.
Das três, amo as duas.



Soneto em Calamento

No calamento cor-de-laranja da noite particular,
casais descasados rejuntam forças de comercial a gasóleo.
Mais funcionária pública do que espermática lhes é a vida.
Hipermercados afluem, a corações, consumos de plástico.

Tenebroso não é viver, mas o teatro alemão.
A gente fode-se tanto emigrantemente.
Porcos mornos nos dão a cor da proteína.
Amarelecemos em esplanadas plásticas e lusas.

Luzimos devagarinho osteoporoses lunares,
enterramos pais com sapatos de ferro.
Treze, catorze amigos integram o enterro.

Oliveiras nos pulsam grécias testiculares,
azeite condiz a tristeza dos lares.
Morrer sempre acerta, viver foi um erro.



Ter Sido

Ter sido vivo na própria vida,
heroísmo banal, respirador.
Viva a vida viva viva.
A estiva cansa o estivador.



Rubra

O teu coração é uma ginja: cor e tamanho.



Caramulo, tarde e noite de 16 de Junho de 2007

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Canzoada Assaltante