02/06/2007

Dois Nomes para o Mármore



Agora é a noite.
Dois dias andei com ela na cabeça.
Parece uma mulher grande e fria.
Não a minha, filho, não a tua mãe.
Isto deve ter sido há anos.
Eu devo não estar vivo.
Recordo um rio, o rio fugia, era o campo.
O campo era sangrado por uma vala.
Ajuda-me a recordar, filho.
Tens de esperar mais.
Quanto menos a vida, tens.
Tu vais ser também isto.

Eu vou ser também isso.
Agora é a noite.
Da outra banda, casas e álamos.
Recolhem tarde o cavalo.
Uma mulher canta.
A prata vibra.
O nome do meu pai, uma folha no chão.
Não estou assustado.
Depois há baile, eles chamam.
Eu vou, eu estou a ir.

Eu voltava pelas vielas, meu filho.
Fritavam peixe, atiravam bacias de água.
As alpercatas apodreciam os pés.
Bebíamos água de limos.
Cada tarde chovia um novembro todo.
As mulheres rezavam e batiam.
Eu tocava de longe as rosas.
A vida já não era comigo.

Oh pai, não, eu saio.
Há um sítio de madeira, luz sobre o balcão.
Vêm outros, trazem falas universais.
Eles deixam estar.
Todo o dia contei folhas, pedras.
Aqui não conto nada.

Não é já comigo.
Eu não sou.
Faço parte de outra maneira.
Não é o amor, nem a poesia.
Não há música.
Há barcos carregados de nomes de mármore.
A lua e a cabeça.

As mulheres guardavam tranças.
As mortas lavam-lhes as tranças.
Elas fechavam-nas em papel vegetal.
As crianças encontravam o cabelo.
A trança, serpente mental, mortal.
Naftalina, alfazema, sangue, cera.
Os cheiros faziam magia.
Toda a gente pronta.
Um de cada vez, uma de cada vez.

Queremos ser outros.
Chove no adro, cortaram o chorão.
O ferreiro é viúvo, o filho rouba.
Eu não roubo, pai, eu sei-te.

Se eu te disser não, filho.
Nada te digo, tens de ser tu.
Tu hás-de vir, suprirás a semente.
Olha essas casas vazias.
Como as devassa o vento azul.
O vento é negro.
Macera os espargos, esvazia os caracóis.
Os cães fogem, cálcias pianolas.
Não te deixei a fome.

Deixaste, pai.
Eu saio sempre à noite, é sempre noite.
Eu conto as árvores.
Candeeiros frios fritam a respiração.
Vejo peixes voadores, desejo café.
Outros homens saem.
Uma tabuleta de ferro gane como um cão.
Este tem a filha em Lisboa.
Eu queria chá, que fizesses lume.

Não há madeira, filho.
Tudo é pedra.
Não tenho mãos.
Sou uma das tuas palavras.
Tu tens frio, eu sou o frio.
Sou o lobo, sou a roupa dos velhos.
Sou a cruz da igreja, sou ter sido homem.
Tu vens.

Eu sou mais e estou menos.
Vinte anos, agora, anoitece e é-se.
Não preciso do meu corpo para te constar.
Entristeci junto a mulheres que gritavam.
Elas pariam e gritavam, fiz versos.
Depois era antes, já me disseram.
Os meus gestos envelhecem.
Treme-me a direita mais do que a esquerda.

Sim, vens vindo.
Esferas, pó de giz, anos-décadas.
Sapatos, retratos, simbiose.
Eu toquei, tu tocas, longe, as rosas.
Não é morrer, é ter sido, filho.
General, bandoleiro, pintor, serpente, pai.

Um homem escreveu um livro, pai.
Tenho ali o livro.
Está muito frio, o sol não oficiou.
Estrelas iguais forram o chão.
Não é o medo, não é a tristeza.
Tenho um homem dentro da rua.
Deveria ter trazido uma camisola.
Também já não procuro.

E no entanto tu amas.
Pouca graça tem isso.
Derrubam casarios, levantam cercas.
Erigem grandes mercearias de luz.
Cegam de electricidade as azinhagas.
Envenenam o azeite.
Dir-me-ás na morte, não antes.

Sim.
Tenho algum tempo.
Uma febre fresca sitia-me sempre.
Sou o teu filho, pai da minha sombra.
Eu não tenho medo.
As palavras vieram contigo.
Tu entre elas, uma delas.
A tua pele muito branca.
A apedrejada pureza do teu olhar.
A mansidão da tua dor não hemistíquia.

Filho, tuas segundas-feiras são sábados.
Vi-te sair da baba do amor para as facas.
Recolheste cantores, sentaste-te no monte.
Os cães rondavam, pressurosos como mordomos.
A tua tristeza é genética.

Não, eu vou.
Não estou a discutir isto.
A noite azul tomou-me.
Ainda trabalho como um pássaro.
Ainda não desisti como um pássaro.
A lua na avenida, o comboio que dorme.
O sangue na minha cabeça.
Sou a criança que fala.

Oh eu sei, sempre soube.
Eu pintava a água a água.
O meu canto era de uma solidão como um cacto.
Não é possível passar isso.
A língua e o desenho existem fora de nós.
Arrefecem os pés dentro da areia.
Fulgimos em dor na ardência do vidro.
Depois não.

Cai a noite, pai.
Subimos para a noite.

Subimos para a noite.
Dois dias.
Cai a noite, filho.



Caramulo, entardenoitecer de 1 de Junho de 2007

1 comentário:

Anónimo disse...

À medida que ia lendo este texto crescia em mim uma tristeza indizível,uma angústia sem nome. É um texto de uma lucidez assustadora. Penso:Ainda há quem duvide da grandeza deste poeta-escritor? Ó medíocres da nossa praça,acordem!

Canzoada Assaltante