22/06/2007

Nenhum dos Rostos – IV

Paul Léautaud em 1952, por Henri Cartier-Bresson



Na manhã clara e fresca, estou sentado num local público.
Penso sem usar excessiva seriedade. Penso nalguns livros do austríaco Thomas Bernhard, levanto-me, vou ao minimercado comprar duas cebolas para daqui a pouco cozinhar um caldo de carne, acabo por trazer também dois tomates pequenos e muito maduros para misturar com vinagre, azeite e anchovas salgadas. Por me ter levantado muito cedo, estou na manhã com uma certa veterania. Tenho o trabalho do dia todo planeado – e também esses ofícios não são excessivos nem sérios por aí além. Já ontem tinha desejado o caldo de carne, mas não havia cebolas em casa. E hoje de manhã, na paz monárquica do trono da casa-de-banho, acabei as últimas catorze páginas de Betão, o livro que Thomas Bernhard publicou em 1982.
Às três da tarde, hei-de estar no posto de saúde da vila para que a enfermeira me acabe o tratamento ao ouvido direito. Há sangue coagulado lá dentro. Há uma semana, alta noite já, tropecei e caí nas escadas que levam ao meu andar. A cabeça embateu com estrondo no corrimão metálico. O couro rasgou-se-me um pouco, sangrei um pouco. Durante o sono, um fio escuro escorreu para dentro da concha do ouvido. Até hoje, a cabeça dói-me do lado oposto, o esquerdo. Mas vai-me sendo possível escrever e ler com a ajuda de um analgésico de oito em oito horas. Pude assim iniciar a leitura de Perturbação, que Thomas Bernhard deu à luz em 1967, ou seja, vinte e dois anos antes de morrer e trinta e seis depois de nascer.
O rolo das manhãs de Junho autonomiza estas e todas as outras brincadeiras.
De tarde, tudo é um pouco mais complicado – a começar por viver. A frescura diáfana da manhã, perdi-a durante o tempo em que cozinhava. Depois de comer, tomar o comprimido de paracetamol e ouvir as notícias da uma, saí para tomar café e ler um pouco mais de Bernhard até que sejam horas de ir ao posto de saúde. O que tinha sido puro, claro e fresco deu lugar a uma espécie de febre: a tarde é de um calor fosco, as árvores doem à vista. O mar é muito longe, demasiado longe. A montanha é o mar daqui, uma petrificada sucessão imóvel de ondas de pedra, de terra dura.
Não é que o mundo seja mais sério. Não, de modo algum. É tão-só um pouco mais doentio. Não por acaso, um dos loucos mansos do sanatório anda por perto. É cortês e velho. Pediu um copo de água na pastelaria, deram-lho, foi do balcão à mesa com o copo, bebeu a água em pé, sentou-se, levantou-se quase de imediato, pegou no copo, devolveu-o ao balcão, saiu para o calor glauco da tarde.
Outros sanatoriais são quase rapazes ainda. Usam sandálias de profetas sem rebanho. Gastam fora do sanatório mental todas as horas possíveis. As mulheres são menos – ou saem menos horas. Uma delas chefiou no Norte uma estação dos Correios. Não sei quase nada da história dela. Pinta-se muito, usa roupas de boneca anacrónica, trata por namorado um cavalheiro que diz uma frase por semana. O cavalheiro usa um bigode à brasileiro das décadas 40/50 do século passado. Calça sapatos brancos, castanhos no peito. Muda de gravata três vezes por dia – um pouco como escrevo: manhã, tarde, noite. Mas só noites, tardes, manhãs, gravatas, sapatos e bigodes reconheço, nenhum rosto.

Caramulo, manhã e tarde de 8 de Junho de 2007

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Canzoada Assaltante