04/06/2007

Onze Poemas de Junho

1. Menino perante Ponte

Uma ponte de madeira sobe das frias águas.
Vista de montante, é o traço horizontal do A do rio.
O Outono está completo, amadureceu todo.
Já o Inverno crocita na boca das aves.
Escurece no dia a vegetação dura.
Homens tiram enguias que a mulheres entregam em bacias.
Fumo quebra-se no céu, de brasas ou nuvens.
Não era para ser escrita, esta terra.
Mas este rio é um verso.
Sabões da lua, as pedras assentam anos.
Serei a criança levada pela brisa dos choupos.

Uma só mulher, um só homem.
Um só homem, uma só mulher.
Não pertenço nunca mais a esse condado.
Cá fora, ruidosamente, pastelarias e gasolineiras.
Eu não.
Eu digo A, digo ponte e rio, outono e inverno.
Barquitos na bacia larga branquejam giz.
Comodoros e balzaquianas ingerem gelados e anis.
A cidade imortaliza a mais católica sexualidade.
Uma mulher, muitos homens.
Muitas mulheres, muitos filhos.
Eu já não.

Quando era menino, espelhava-me um lírio branco.
Os outros meninos liriavam também branquejavam.
Homens almoçavam bacalhau e vinho.
Víamo-los trabalhar como animais lúcidos.
Eles morreram, quase não vivem.
Suas mulheres lacteavam o ar em torno.
Uns e outras perfumavam de olhos torrados de luz.

Ainda tomo o comboio, devasso matas ainda.
Toco alheios cães na memória amarela do meu.
Funerais e casamentos frequento, astrónomo.
Tenho pouco tempo por tê-lo todo.
À sombra, a música diz-me recados.
Músicas, tempos, rios: tudo versos.

Fita taludada de areia, cabeleira de ervas.
À direita, a vala de enguias e limos.
À esquerda, a cinemateca hortelã do campo.
Mais longe, a fixação crepuscular.
A meio termo, a partitura das aves negras.
No saco, comida e agendas pretéritas.
Os pés na água, os olhos na água.
Menino, eu possuía o A do rio com ponte.
Eram as letras para trocar a vida, como trocaram.



2. Mercado

Vendedores de ananases à sombra apelam
a marchantes senhoras de cestos correctos.
Ovelhas abelhas s’enqueijam se melam
e cães mijam baixo obras de arquitectos.

Peituda leiteira divulga broinhas.
Anémica moça consagra morangos.
Solteiros penteiam a óleo franjinhas.
Solteiras s’avacam as ancas fandangos.

Cego acordeonista valseia tostões.
Fiscal de barracas aceita um portinho.
A Maria é vaca, o Zé é boizinho.
Mercados e feiras, culturas, nações.



3. Haja Quem Qu’Eu Não

Num relance à tardinha talvez apareça
um grupo de gente de que uma mocinha
o peito rijito a saia curtinha
te converse e verse e a alma apeteça.

Isso pode ser maior vez não é
o mais são casais pregados à vez
que cansados dizem vamos ao chinês
hambúrguer ou pizza ou ao mais ao pé.

Cansaço. De tudo. Todos tão cansados.
Vez ao karaoke, hip-hop e fados.
Ter casa certinha, lençol de flanela.
Cuspir toda fora a bílis amarela.

É a gaja certinha ’fessora primária
casada co’ agente senhor vereador
é a fêmea porcina porca alimária
que assusta a cria e o tratador.

O gajito-cocó que usa chavelhos
mas doutor doutóra rotundas a cem
do pai já despega os mesmos pentelhos
colados a cuspo às costas da mãe.

Não. Eu não uso. Se for à tardinha
estou fora, não vou, q’s’a’foda a mocinha.



4. Lenta Certidão

Pessoas há que são
de si mesmas a lenta certidão
de pessoas.
Conheço-as:
são boas.
Muitas vezes um casaco castanho
de mim penduro
para ser como elas
gajo pensado, pensativo e maduro.
Nem sempre dá.
Envergar vestes nem tudo cobre.
Lentidões, hábitos, esperanças, bem
isso habitua o mundo velho ao corpo
novo que, como ele, envelhece, ruas,
como ele, não passa.
Vezes há em que a minha boca sorria?
Sim há, de alegria, perante a poesia.
No mais, não.
Táxis edulcoram a viagem diabética.
A escaganifobética sem marido
coça em plena praça seu prurido
e diz-se católica, académica e global.
Porra – está mal.
Eu digo: nem sempre me acode a temperança.
Num antigo salão de putas havia dança.
Mulheres-violetas alfazemavam
o cheiro a couro d’entrefolho que conavam.
Machos perucados a elas acudiam
rezando a esmo putas os pariam.
Triste, célebre, azul mundo negro.
Eu descia, adolescente, rés do Mondego.
Acudiam-me amarelações: Sérgio, Camões.
Aprendi – e fui triste.
’inda hoje desenvolvo
manigâncias de versos
óctuplos de polvo.
Espera.
Espera agora.
Eu digo.
Levantam ao vento as saias as árvores.
A tez amarela da tarde alaranja.
Passa a menina de chita de franja.
L’além dos muros há nomes em mármores.
Sou o rapaz da hora.
Acresce-me a importância trabalhosa da memória.
Amo dois homens que não respiram.
Eles amam-me também – e isso anoitece.
Espera.
Espera agora.
Eu digo.
Do aparato ominoso
adivinham os livros
as pessoas que vão ter.
Isto é um trabalho.
Vejo vivos oficiais de seu ofício, viver.
Topo cobardes, cabos, sargentos: não
vivem, espreitam.
Não.
Eu consulto pessoas.
Toda essa língua entrada nos livros gordos.
Os alemães, os ingleses.
Os belgas, os suíços.
Eu espreito.
Espera.
Espera agora.
Eu ouço.



5. Flor e Cultura

Não cresce do corpo a luz da flor definitiva.
Terminal cresce a outra, flor ela também.
Contavas que fosse uma flor rediviva.
Uma outra pode tê-la sido também.

São canteiros. São dias sem berma.
Um gajo não pede p’ra ser hortelão.
No fundo, amor, desamor e esperma.
E nasce um gajo de pai e de mãe.



6. Difícil Entendimento

As grandes árvores do largo dançam ao vento.
Bonitas, indiferentes – como putas de borla.
Crianças e acordeões à sombra delas anos.
Chove sem elas, queixa-se a pedra do chão.

Isto é o mais difícil entendimento, o largo.
Retornados de África não podem com versos.
A mais, da Bélgica chegam corações separados.
A chuva depende dos limpa-pára-brisas.



7. Monarquia Sanatória sem mais História

Fala devagar o velho entristecido pela falta de perna.
Cortaram-lha aos 19, ele tem 66.
A memória é um joelho, a fala é um sebo.
Meninas princesas, filhinhas de reis.



8. Uma Quadra Científica

Não de todo me deu ainda a tristeza óssea de meu Pai.
Suas imagens passadas sim, deram-me, mas outras.
Penso hoje que um cabrão normal não é filho.
Também não é pai, é só uma sala de projecção.



9. Outra

A gente vai, a gente volta.
Remanso único é a coberta.
O Povo não dá de revolta
uma alma só que seja aberta.



10. Redução

Não vem da vida nada para viver fora.
Dos sonhos vem, mas tal cura a luz.
Nós dizemos muito – Queremos ir embora,
mas fora não dá, que dentro reduz.



11. Quatro

Uma pessoa morrer antes de ser a morte?
Dizer ela o número antes da lotaria?
Dizer ela azar antes de ser a sorte?
Trocar a tristeza por pura alegria?



Caramulo, tarde de 3 de Junho de 2007

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Canzoada Assaltante