06/06/2007

Dentro de Ti



Um rio anoitecido, a nossa vida, tantas vezes.
Algumas palavras apodrecem-nos a alma como canoas.
Derivamos na inconsequência de alguns ódios.
Somos gente que a vida empobrece tanto.

Estou sozinho numa sala sem móveis.
Dentro da cabeça rodam os gonzos da primeira velhice.
Escondo muitas vezes as mãos em papéis amarelos.
Um lápis segue-me, voraz comedor do meu coração.

Sonho muito com comboios vazios.
Acordo para escrevê-los, não consigo.
Adormeço dentro de um poço demasiado humano.
Sou mais um de nós num convosco de ninguéns.

Vê-me tu agora, dentro de ti, onde já morri.
Uma criança de boca azul insulta-me devagar.
No monte, pertenci às cheias de inverno.
Cachorrei anos entre cedros e oliveiras.

Depois, eles começaram a morrer.
Os cães, os rapazes, os limoeiros, o rio.
Refugiei-me dentro de uma biblioteca mortífera.
Escrevi palavras que se rasgavam sozinhas.

Tenho uma lâmpada na boca de peixe.
A sombra toca-me, muito genital.
Fecho os olhos na manhã.
O barqueiro procura-me e lê-me, tantas vezes.



Caramulo, entardenoitecer de 6 de Junho de 2007

5 comentários:

Afectos disse...

Eugénio de Andrade é para mim uma das minhas grandes raízes (por várias e uma razão). O Daniel com a sua escrita faz-me lembrar essas duas razões que habitam em mim. Espero que nunca (desculpe-me a apropriação)me decepcione.Sei que não é deus (nem eu acredito) mas que seja sempre humano no bom sentido de ser.

Manuel da Mata disse...

Bom dia, Daniel!

Do melhor de ti.Admirável.

Daniel Abrunheiro disse...

Vindo de ti, Manel, é tão agradável. Obrigado. Obrigado também, Afectos.

Camarelli disse...

isto realmente está uma maravilha...

Paula Raposo disse...

Excelente!!! Mais uma vez...

Canzoada Assaltante