21/09/2023

H. EM BUSCA DELFIM - 146 a 148 (2.ª-f.ª, 18 de Julho de 2022)

© Minor White




146

 

Pela alva, o céu de Coimbra franqueando a maravilha consistente no voo multitudinário das andorinhas. É fenómeno que me enche invariavelmente de uma furiosa euforia. A minha vidinha, naquele momento, carece menos de sentido do que de importância. Assim é.

 

Outros se lhe sucedem – mas todos de menor fulgor que o da andorinhação. Nem metade da majestade logram, valha a verdade. Ainda assim, hei que experimentá-los, anotá-los para amnésia-futura. Cedendo à facilidade infeliz, experimentei, antes, amargura & inércia. E não quero tal.

 

Visito amanhã o meu Irmão. Visitei hoje o Gato-Sépia-Alvo. Devo chegar à noite de trabalho sem haver, de dia, pregado olho. O que for, será. A caloraça desta segunda-feira não foi tão bruta quão tem sido – mas já os meteoboletineiros ameaçam que o inferno estará de volta na próxima quarta.

 

Lopo Capela Zardo Carvas toma cerveja muito fria no Café V. do M. Faz ele muito bem. É carpinteiro de mérito, ganha desembaraçadamente a vida, trabalha muito & muito bem, bem merece o refrigério da cervejola pelo entardenoitecer de mais uma jornada madeirófila.

 

Quioto Belro Crisol Lenente leva a passear o cão & a netinha. O animal vai eufórico (como eu, sub-ante andorinhas), a menina quer um gelado. Vêm para a esplanada do V. do M. A criança consola-se com a gélida iguaria; o cão, obrigado a sentar-se, já se aborrece. Não é possível agradar a gregos & troianos ao mesmo tempo.

 

Mas tenho de modificar esta mesmidão existencial que há anos demasiados entorpece o meu percurso. Só comigo devo contar – não com vãs esperanças, não com improváveis milagres. Posso contar com a volante alvorada andorinheira – sim, posso. Mas a sopa no prato e o livro publicado – são comigo apenas.

 

Malmo Alvor Regateiro Félix pensa o mesmo de si mesmo (cf. parágrafo-hermínio anterior). Também ele se tem basta & vastamente desperdiçado. É verdade, porém, ser ele possidente de meios materiais de que Hermínio não pode congratular-se. Mas mesmo assim. Mas mesmo assim.


 

147

 

Não me desgostaria possuir um vintém de ouro por cada passada que dei já nesta / por esta Cidade. Sem tal remuneração embora, seguirei pass(e)ando-a, assim me o permitam o fôlego & o ácido-úrico.

Roço demasiadas vezes o quási-desespero. É vicissitude (vício & atitude) minha. Não importa. Por vezes, fulguro numa espécie de antecâmara palaciana. Por outras, varro apenas a cabana.

Observo atempadamente cada formigueiro. Sempre que posso, abandono açúcar em azimute que seja propício a esses retinto-negros seres transportadores & servilhões de sua rainha. E então escrevo.

Julgo hoje porém que já em 1981 eu de algum modo sabia. Ou então, julgarei amanhã que já em 1981 eu de modo algum sabia. Venha o Diabo das escolhas – ou os Anjos que levitam nas mais outonais folhas.

O cálix, até às fezes imbuído de líquida amargura, é para sorver de emborco. Metáfora fácil, receio-o bem. Não irei a Londres nem a Paris. A Madrid fui já – mas tão-só duas noites com seus incompletos dias.

 

(Hermínio tem bem mais piada quando orador do que enquanto escrevedor. Quanto a isso, todavia, nada a fazer. A escrita arroga-se uma importância profética de escritura – que o quotidiano aliás desmente com uma perneta-às-costas.)


 

148

 

Pego às zero-horas no serviço por que magramente sou pago.

O contrato, devidamente assinado pelas partes, estende-se a 19/9.

Tal precariedade não afecta nem o que como, nem o que cago.

Nem faz rebrilhar o Sol, nem enxuga o que chove.

 

Tem um Peugeot antigo, o homem Falua Palafrém Estugado Mirante.

É roçador-de-mato, cauteleiro, onzeneiro, sete-mil-ofícios.

Tem gastado a vida em mais sete-mil-sacrifícios.

Uma das filhas não fala com ele – mas, a isto quanto, adiante.

 

Já entardenoitecer – e eu sem Mãe a que(m) recolher-me.

Quem mal faz sua cama, mal nela, ah sim, dorme.

Não é que me sinta vil, desprezível, execrável ou verme.

É só uma orfandade certas noite enorme.

 

Tenho de repensar tudo como se de novo.

Hei ainda tempo, julgo eu, antes do asilo.

A alegria é sem-peso; mas a tristeza, ao quilo.

Que a morte só possa cercear qualquer meu ab ovo.



 

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Canzoada Assaltante