30/09/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 129 (integral, desculpai-me o mau-jeito)

 

129

 

Em instante de pausa matinal, na esplanada, Hermínio ouve dizer em mesa próxima:

 

“– A minha mãe ficou viúva aos dezoito anos, quatro filhos por criar, dois dos quais gémeos.”

 

São duas velhas: uma falando, a outra escutando. H. acha piada ao dito da velha, regista-o aqui mesmo, aqui a exactas cem páginas do manuscrito

H. em BUSCA DELFIM

ou

AINDA NÃO SEI QUE NOITE SEREI ESTA MANHÃ

 

Sob tílias frescas repousa. Oito & ½ da manhã. Há tempo para pausar-se.

Enumera elementos transitórios (fregueses rápidos) desta esplanada sob tílias:

 

Vante Celáfilo Cedral Mabílio, 44 anos, engenheiro civil;

Cazorba Anséptimo Hortal Trende, 18 anos, aprendiz de algo;

Sota Quipério Namarreta Cerdiz, 52 anos, enfermeira de pediatria;

Dopó Bom-Corpo-de-Deus, 68 anos, santomense, aposentado;

Claudina Inzabel Melriço Geitoeira, 15 anos, repetente do 8.º ano;

Porfírio Barão Poejo Bilro, 22 anos, pingponguista da AAC;

Almira Morim Quadros Borralho, 32 anos, desempregada;

Toinha Barroca Convento Caldeireira, 87 anos, senhoria de garagens;

Leandro Jazigo Marrano Passarinheiro, 58 anos, dramaturgo;

Vilhena Perfeitidiota Malpazes Repissa, 60 anos, chulo da Câmara Municipal;

Torresma Betencurte Demadeiros Pósito, 62 anos, açoreana das Flores.

 

Consumos da onzena supra-enumerada:

 

Vante: quartilho de água-mineral-limonada;

Cazorba: coca-cola (mas pediu pepsi, que aqui não servem);

Sota: chá-de-cidreira;

Dopó: bagaço;

Claudina: gelado de chocolate;

Porfírio: imperial preta;

Almira: bica cheia;

Toinha: galão claro;

Leandro: absinto;

Vilhena: mijo-de-burra-prenhe;

Torresma: licor-de-alperce.

 

Entre gentes & consumos díspares, H. é quase feliz.

As linhas resultantes mesclam observação & especulação.

Mesclam também & ainda: fonética & catálogo, nome & dom,

preceito & preconceito, memória & invenção, domínio & perda,

transitoriedade & remanescência, florilégio & sortilégio, zero & infinito,

luz & distância, jogo & labirinto, animalidade & cibernética,

hermenêutica & teatro, sincronia & bolor, aroma & cegueira,

irmandade & solidão, miragem & estatuária, plenitude & deserto,

angústia & monopoly, ultimato & república, rancor & madressilva,

chave & jardinagem, sinapse & aço, óculos & açúcar-amarelo,

paleta & anti-erotismo, dinheiro & (des)infância, tinta & papel.

 

Já o Sol amadurece em Rosa Descomunal.

No parque amplo, carros como cães abandonados.

Tílias & cedros segregam a baba benigna sombra chamada.

A mãe daquela velha primopariu aos quinze anos de nascida.

Sobre a mesa de H. floresce a imperial mui bem tirada.

As bolhas de gás da cerveja indiciam invisíveis mergulhadores submarinos.

Canaviais estiolam de amarelecimento, perto do Mondego embora.

Rapazes & raparigas em excursão-rumo-algarves: alegre barafunda.

Condutores de BMWs negando cêntimos ao pedinte-dos-semáforos.

Condutores de Renault-Clios dando.

A Poesia maiúscula liberta mais do que o trabalho/arbeit em Auschwitz.

 

Continuo sem saber que noite serei esta manhã.

Continuo no dístico O amor é cego / A memória é o cão de cego.

Continuo crendo que só a ubiquidade nos tornaria eternos.

Continuo investindo na trindade Outubro, Outono & Rosas.

Continuo mi(s)tificando a Infância como Idade-do-Leite-&-do-Mel.

Continuo (des)contínuo de minha escola interior.

(NB: contínuo, não professor.)

Continuo não sei porquê, nem por quanto, nem até quando.

Continuo anaforicamente por razão de ritmo.

Continuo sem esperar.

Continuo quase sem desesperar.

 

Novas presenças à sombra subtiliana da esplanada antechoupalina:

Motário Ronheira Valporca Naval, 50 anos, leitor de Camus (anti-Sartre);

Esquadriça Vivende Canarim Garres, 50 anos, leitor de Sartre (anti-Camus);

Pelicano Belimano Angústias Antíloquo, 60 anos, leitor do católico Gabriel Marcel;

Jejúnia Pompa Fastos Rosicler, 35 anos, leitora do católico Graham Greene;

Feliciana Faloporsi Macrebe Columbino, 20 anos, leitora de   Brown (& de merdas-parelhas-afins);

Florentino Brelxelas Extravindo Melumbano, 90 anos, leitor de tudo & todos;

Cedina Andor Partidrizes Demogreira, 19 anos, leitora de Manuel António Pina;

Conserúndio Afã Basteiro Onzenardo, 28 anos, leitor de Al Berto;

Nardo Esparto Caruma Brojo, 37 anos, leitor de Alberto Pimenta;

Baquim Urze Giesta Linhos, 46 anos, leitor de Guerra Junqueiro.

 

Nos derredores rodoviários, segue passando & desgraçando – quê?

A mortandade dos acidentes-de-viação: boas estradas sujeitas a maus condutores.

Nas vielas mais mijadas da Cidade, trafica-se o ópio a tostão mortífero.

(Pensais talvez que V. malogro desinformação? Pensais mal.)

(Pensais bem, porém, quando concluís que tergi(-)verso de mais.)

A vida não é, ao contrário da amargura, devagar.

Viúva aos dezoito anos, mãe de quatro petizes adequadamente infelizes.

Ainda não sei que amanhã será a minha noite.

Não serei, já bem o sei, nem ubíquo nem perpétuo.

Posso ser, quando muito, vitalício.

Tenho saudades lancinantes do senhor-meu-Pai.

 

Como escrevi no Caramulo, aqui há uma dècadazita:

O senhor é o meu Pai / Nada me faltará.

A manhã roda & chia em seus gonzos-bonzos.

Renovada freguesia tipo-circense vem ajuntar-se a este sínodo.

Dar-Vos-ei dela conta & rol na próxima undécima.

Entretanto, procedo ao inventário de todo um silabário de escrebebedor.

Lonas isolantes (ou telas) para precaução de uma chuva que não cai.

O senhor Henrique Santos pranteando mudamente o passamento de Luís.

(De quem? De Luís Manuel Vide Miranda, 1960-2019.)

Chuva que nos não vem à terra – mas aos olhos, sim.

Luís Manuel, professor & músico, cerce cortado da nossa instância.

 

Jacobém Canditerno Missamá Oculaviano, 200 anos de morto, esquecidíssimo;

Imbraimo Cenarmarne Dafé Galavaz, do C.E.P., morto no Marne em 1918;

Gardénio Escola Pulcromano Catraca, frei franciscano (1917-1994);

Primaz Chamiço Patitas Telhado (Moimenta da Beira, 1898-1899);

Sancho-Cisco Madre-Silva Fonte Bispo, polígrafo (1929-1987);

Pedro Santos Velho Lúcia, edil, n. 1983 (talvez em Leiria, não sei);

Vitório Vaze Vale Glaciar (camionista desde 1982, ex-homeopata);

Tambalazé Curia Alhos Vedros (artista circense, s/d);

André Bernardes Acúrcio Mendes (actor sem teatro, s/d também);

Belarmina Fulgor Fúrias Mansas (cozinheira de mão-cheia, n. 1945);

Cesárea Maria Assis Percal, ménagère ou coiso, n. 1961.

 

Sou do tempo em que Nacho feirava de Norte a Sul, como o vento.

Sim, recordo o meu materAvô, precária memória embora história.

A infelicidade existencial de Albano: corneava-o, imp(r)udente, a mulher.

(A gente não sabe a verdade nem por a metade, quanto mais toda.)

Escrebebo a sós, mas prefiro beber em sã & louçã companhia.

(A moda das tatuagens pegou raiz-de-estaca: pobres conspurcados.)

Verdade-seja-dita – mas só a tentos, tentativas, variações & alternativas.

Não percebo o Cosmos – mas percebo a improbabilidade de Deus.

Julgo ter-me perdido de Elias Rodrigues Faro em 1998 – cedo de mais.

Julgo a sexualidade como algo do mais absolutista foro-privado.

Nunca exibirei defeitos, digo-eu-co’s-nervos, quais obstinadas virtudes.

 

São as onze-horas-seis-minutos da manhã de quinze-do-sete-do-vinte-&-dois-XXI.

Não me importam: nem-o-que-nem-o-se almoçarei antevesperalmente.

Talvez uma latita de anchovas? Ou de cavalas? Ou de atum?

Ele há desimportância, ele há distâncias, “eu realmente”

A verdade é ir redactando-me principescamente à pobre.

Trabalharei das zero às oito próximas – por tostões.

Ergo-me cedo, esfrego de fria água tanto a cara quanto os colhões.

Taxistas param por aqui, ingerem folhados, tomam garrafadas de água.

(Fechar-com-chave-de-ouro-o que jamais foi aberto?

Story-of-my-life – responde-me Hermínio, ante o silêncio cúmplice de Delfim.)

Homens-viajantes-por-parques-verdes atrelados a cães-humanizados.

 

Cristiano Bucuresto Odessa Danzigue, pedinte-de-semáforos, idade(inde)terminável;

Chino Ancestro Mêine Cenar, bissexual que não conseguiu chegar a tri;

Calimero Precito Dazul Terça-Feira, vigilante de asilo-de-pobres, 58 aa.;

Carlos Manuel Silveira Ferro, electricista, da Portela, n. 1946;

Maria Dengrácia Valebesteiros Botulho, luso-venezuelana, 35 anitos apenas;

Hermínia Cândida Rita Isaura, n. 1900, ano da morte de Eça de Q.;

Petra Cante Leo Blume, italiana nascida em Dublin, 16-6-1904;

Blú Quadrado Empena Dóide, mexicano nado em Oxford (1804);

Amado Elegante Belinho Sapateira, Pedrulha-do-Campo, s/d;

Romano Maurício Dodete Torres, editor de porcarias-tipo-Dan-Brown, Lx., 1940-2012;

Másculo Erculano Camilo Veirais, tipógrafo, contentinho-da-vida.

 

A par da Música, considera H. a Ornitologia a prima-obra-arte.

Os alados cantam a escola primeva, a gregoriana filosofia.

Também H., daqui não saindo, é cidadão-de-toda-a-parte.

E a ele pertencem, a que pertence, cada Filha & cada dia.

Que a paz requietória é inegável? Pois bem o é.

Que o furor refeitório é inadiável? Pois mal o é.

Aos 58 anos (+ dois meses + 7 dias), H. já alguma coisa sabe.

(Sabe o que nele há, o que houve, coube & cabe.)

Disto decorre sua livre versalhada.

Esta mesa: sem editor ou futuro, só merdice & mais nada.

(O Rui Candeias acaba de pagar, gentil, um copázio de cerveja.)

 

Atentai V. agora: Inácio Vasco Júnior Igreja, 64 anos, liberto;

Damasco Pancrácio Sénior Verdeja, 74, esperto;

Ceitil Vital Aramaico Alberto, 82, previdente;

Zé-Manel-Beto-Toranja, 53 & presidente;

Cristino Varandim Goes Repilado, há meio-século nado;

Tristão Virgínio Araújo Maldonado, na Barrinha de Mira há muito afogado;

Pancelária Dasdúzias Debolo Dançã, sozinha p’ra sempre desd’esta manhã;

Carlitos Romeno Ágata Lencastre, comedor de noz, amendoim & avelã;

Elizaberta Valbom Dessanjoão Dever, olhando o calor que nos faz t(r)emer;

Chatice dos Versos Malfeitos Derroda, a foda é não saber-se escrever.

Mas mais V. digo, apesar-d’-embora-todavia-entanto-&-porém:

 

Tenho saudades lancinantes da senhora-minha-Mãe.

 

Em instante de pausa matinal, na esplanada, H.

etc. 





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Canzoada Assaltante