29/09/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 124 a 128

© DA.




    124

    Um qualquer mecanismo neurónico faz com que, ao despertar, esqueçamos os sonhos tidos na noite jacente & requietória. Ainda bem que assim é. Trata-se, não duvido, de uma autodefesa. Como toda a gente, recordo pouquíssimo de sortilégios oníricos.
    Uma ex-namorada que, já ex-, se matrimoniava todos os dias (e pela igreja, não menos) com noivos diferentes;
    Jesus Cristo num túnel verde-etéreo oferecendo-me o cálice;
    O meu Cão Amarelo no Monte rindo-se qual criança;
  Palavras do léxico jurídico pintadas na areia da Figueira da Foz: ius solis, ius sanguinis.
    A minha Mãe, viva, absorta & morta.


    125

    A pomba solitária hoje almoça.
    Desgarrada de bando a encontrei.
    Na Rua do Padrão, Coimbra-a-Moça.
    Trazia eu muito pão, algum lhe dei.

    Consola-me ver farta a avezinha.
    Lauta-me ser dador panificante.
    É como posso ser munificente.
    E é iludir-me vida não-sozinha.


    126

    [Miguel Torga & Manuel Alegre, perguntais?
    Digo: homenagens a mais para obra(s) a menos.
    A mediocridade sói ver-se & dar-se a carnavais
    de consecuções que, sejamos francos, são de somenos.]


    127

    Amo as minhas Brancas, o meu Sépia, o meu Amarelo.
    Falo de Filhas como falo de Gato & de Cão.
    Retiro da Beleza quão tão-só Belo.
    O resto, dou-o ao desbarato d’alhei(r)a condição.


    128

    Aparece-me, no todo verde vestida
    (sem mangas & de bainhas pelos joelhos),
    a loura-natural de olhos vermelhos,
    Clementina (-que-luz) Queluz Guarida.

    Ela é filha de ignotos parentes.
    Ela nasceu p’ra mover as machas gentes.
    Nem sempre o Sol é lindo – mas ela é:
    mas é que a agarrou o Chico-Zé-É.

    Chinelitas tão fáceis d’ouropel!
    Pèzitos que o verniz ’inda não grita!
    Hermínio acha-a propícia a Daniel
    – só que disso se ri Delfim, cru & catita.

    Toma bica-com-gelo-&-limão.
    Esplend’ela seu seio anti-anarca.
    Cada mamilo seu fura evasão
    da seda da blusa (cara & de marca).

    Pèzitos que sequer flocos de neve.
    Valem dedando crus de luz sandálias.
    Ancas que, tocadas só ao de leve,
    incendiariam satã-parafernálias.

    Namorou ela c’um oficin’-auto
    chamado Rui Delartes Altorninha.
    Não eram leitores de Poe, sequer de Plauto.
    Eram o mor-casalinho-da-vidinha.

    O problema (meu) é imaginá-la imagem
    (em branco de louça a mais sanitária)
    debruçando a natura una & vária
    & lavando o rosto sem maquilhagem.

    Que fortuna será, sem vestido verde?
    Que unhas bem cortadas de que mãozitas?
    Preferirá bidés? Ou então sanitas?
    Que retrato a retrata & há-de ser de

    mais perfeito rosto dentre bonitas?
    Já pagou a bica, o bolo-de-arroz.
    Ficam estas linhas escritas
    por quem nunca nela ainda se pôs.

    [Quão iníquo resulta verso ad/mirante
    de pessoa bonita mas sem culpa
    de bonita tão ser a versos (carago! adiante!)
    que só-mirar ainda é desculpa.]

    Vestida de verde qual um sonho traspassado a bosque,
    é uma visão-tesão perdoável, não de mim que a busque.
    Por ignorância (& falta d’agenda), não serei quem arrisque
    prejudicar excepções, não serei eu, desde que.

    Vestida-de-verde, mais branca no que ver deixa.
    Se uma afinal, não se dá como em Condeixa
    se despem tem as casadas tão cansadas de limpeza
    por sessenta-&-tal-tostões – é-uma-casa-portuguesa?





Sem comentários:

Canzoada Assaltante