05/09/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 106 a 110

© DA.




106

 

Sol à bruta, fornalha deprimente.

Seca severa a ponto de extrema.

Sal no olhar, espero óculos novos.

Sede de coisa alternativa à vidinha.

 

Saibro incrustado nas dobras do coração.

Trabalhar como um galego, um mouro, um preto.

Serpentear por entre canaviais ilusórios.

Temer pouco, tremer muito.

 

Trânsito regular nas vias-externas.

Agrura geral, com sede nas tabernas.

Entretenho-me fixando texto de costas no papel.

É um desporto inócuo, incapaz de suster as marés.

 

Rarefacção de ideias não suficientemente desesperadas.

Uma lassidão invasiva, narcótica, entorpecente.

(Como se não bastara já ser gente.)

Por aqui, dias-de-Rainha-Santa, multidão de pequenos-nadas.

 

Estes meus são anos crepusculares, dúvida nenhuma.


 

107

 

Greve dos motoristas ao serviço dos autocarros municipais.

Sol o mais abrangente, temperatura de sufocação, escapatória nenhuma.

Maravilha perene do arvoredo ainda não extinto pela tara dos dendroclastas.

Operários comprando litros-&-meio de água gelada em bebedouros clássicos.

Hermínio trabalhará das 16 às 24 horas: de corpo presente mas com a mente sita alhures.

Ainda um pouco de matina por/para viver: mas em breve se extinguirão as tréguas.

O Irmão de H. disse ontem três (talvez quatro) palavras: angústia de pré-acabamento.

Os moribundos exalam/balbuciam vocábulos como as novíssimas crianças idem.

Ao serviço de um salário efémero, H. apresenta produção, recolhe-se ao quarto como boi exaurido.

Sob tílias, um copo alto de cerveja frígida, leão pachorrento, sabedor do valor da indiferença.

Diz a senhora Alcobia Manata Recinto Bruma ao senhor Tabor Breda Anjos Pata:

“Já não há quatro estações, só um Verão de cinquenta semanas ao ano.”

O senhor Tabor anúi/aquiesce/redargue:

“Deveras, minha senhora. Infelizmente, minha senhora.”

Greve dos motoristas

Etc.


 

108

 

Com áspera caligrafia retraço o meu dia

À solta desandam meus lobos ao luar negro

Por cafés de província pericardicamente derramei

A irretornável mocidade, dela a poesia oclusa.

 

A buliçosa rosa da mente não (se) desarma

Colho do instante o silabário possível

As mercearias funcionam, ele há sempre quem

Formigue à cata de novidades-em-série.

 

Nada de isto tudo é p’ra levar muit’ a sério

O siso estará na jornada abrangente

No evitar queimaduras & fingir-se (in)diferente.

 

Do tudo concluo o nada costumeiro

E assim H. (mas Daniel Abrunheiro):

Caligrafia & rosa & siso & ficar silente.


 

109

 

Pode uma depressão-crónica pretextar tantas más-decisões (= escolhas) quantos maus-usos? Pode. Pretextar, pode. Justificar, (talvez) não.

 

As novas-religiões (LGBT, Veganismo, Danças-de-Salão-Pilates, Me-Too, BLM, Anti-Caucasianismo & por-aí-além) constituem-se, como aliás as velhas que pretendem substituir/abolir, meras manifestações do carneirismo atávico & mimético imanente a todos os rebanhos de emulação.

 

Em vez de algum promontório escalvado, uma colina arborizada.

 

Passagem de rapariga nórdica rumando a Estação Velha (Coimbra-B): branca qual lírio puro, bonita qual floco de neve resistente ao sol ímpio do meu País.

 

Penso no poeta & polígrafo Jaime Baeta Rosa Mont’Alverne, natural de Montemor (não sei se -o-Velho, se -o-Novo). Datas dele: 1914-1980: as exactas mesmas de meu paterTio Alberto dos Santos Abrunheiro. Ele lia-me manuscritos, rapidamente tomados pela tosse. Eu ado(l)e(s)cia então. Muito do que depois vim (& venho) a escrever, Dom Jaime, é devedor de tal lembrança pensada. Ou forjada.


 

110

 

A tristeza é qual o beber-se leite que não seja o da Mãe.

Digo isto ro(n)dando sem mota (n)o poço-da-morte.

Ao azar-vulgo-acaso abro mãos/rosas à sorte.

A mais branca mulher escolhe outro-alguém.

 

As quatro proposições acima lineadas

(cor)respondem, lapidares, ao meu momento.

São elas urdume de meu pensa’sen’timento.

E são críveis q.b., tidas & pensadas. (Ou forjadas.)

 

Jantei ontem às escuras num parque-verde.

Dera-me o repasto certa Cunhada que tenho.

Tinha alguma fome, mas nenhuma sede.

E não tinha luz para escrever no canhenho.

 

Canções que docemente doíam na remo(r)ta infância.

Melopeias do Pai , ciciando assobios.

Não ter sido marinheiro, ou sequer guarda-rios.

Sentir mui de perto que tudo é de distância.

 

O Crematório não obsta aos fantasmas morivivos.

Vale sobre-o-mais ser certo o esquecimento.

Cinzas, os cabisbaixos; cinzas, os altivos.

Sei (d)esta ciência a tod’&qualquer momento.

 

Antes da erupção, a família em Pompeia.

Antes da dita, a família em Erculano.

A brisa suavíssima, do Pai a melopeia.

E o dulcíssimo porvir, manhoso de engano.

 

Uma coisa é povo; bem outra, populaça.

Uma coisa, ser clã; outra, clientela.

A minha flor favorita é a ros’amarela.

(E ele há versos em que eu não faço trapaça).

 

Pretextando lutos (de família & de amigos),

avinhei-me à bruta como auto-castigos.

Abandonei ofícios, sempiternei perdas.

(E estou confessando umas meras merdas.)

 

Revivo o meu Velho sempre que sou educado.

Revive ele-em-mim a cada cortesia.

Tratam-me por “Senhor Daniel”? Ganho logo o dia.

Julgo que ele me vive, qual nado-trocado.

 

Fala-me depois da tormenta, deixa respirar o vinho.

Cálida paz nos aguenta & não me deixa sozinho.

Queiras abrir em brancura esses teus lençóis lavados.

Negues não mais a brandura de nós ambos liados.

 

Tantos anos, c’um caraças, tantos idos/perdidos anos!

Semelham eles a vastidão amétrica dos oceanos.

Obsolescem nos asilos os seres-idos, mutilados.

Foto tipo-passe no jornal: ei-los já obliterados.

 

Cantam entretanto as aves irremediáveis, naves hábeis.

Sinto-as folheando árvores, libérrimas, inexpugnáveis.

São a mais franca minha alegria, ó Rosa Maria.

São quão de festa me resta, ó Teresa Sofia.

 

Estas estrofes pró-delfínicas visam apenas olvido.

Socorre-as muito o déjà-vu, digo, o já-vivido.

À uma-da-tarde, porém, sem gaze de clemência,

o Sol já explodiu, pleno de intransigência.

 

Senhoras da claridade, vi-as mui, em menino, passando.

Pareciam-me o que eram: flora bípede a mais grácil.

Hoje velho, não cedo à tentação do ilusoriamente fácil.

Faço antes assim: ve(ser)jo muito, só se possível rimando.

 

Havia empréstimo de livros naquele parque-jardim.

Ao cabo do escorrega, eu folheava páginas sem-fim.

Talvez 1970 já grande coisa V. não diga.

Mas olhai que eu era feliz, era então outra a cantiga.

 

(...)


 

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Canzoada Assaltante