20/03/2022

REGISTOS CIVIS - 99 (incompleto)

 

Consec'úteis - 99

 



    Em a lei não especificando dias úteis, são consecutivos então. É esta a norma. Da utilidade dos dias, a utilidade propriamente dita, não há muito que se lhe diga. A corrente segunda-feira, 14-do-3, é fosca. Anda arredia a luz alta. Edital de sombras húmidas, a dúbia claridade hodierna. Talvez saia um pouco pelas quatro & picos, ainda não sei. Não sei se posso chamar-lhe, à corrente segunda-feira, útil.

Não mais dilação.
Pedras rolaram pela encosta.
Atiram lixo a zonas-verdes.
Desrespeitam impunemente.
É tudo feiamente triste.
Outras vezes, o sol lava.
Nem todos a crédito:
mas todos a prazo.

Jorge vai à Farmácia Donato.
Benedito visita Ulisses.
Elias rememora Fernando.
Bernardo convoca seus sócios.
Isabel chora na igreja.
Juliana cozinha regiamente.
Antonieta é feliz em casa.
Tiana, doida por compras.

Linha de choupos à berma-rio.
Homens maltrapilhando derredor.
Grandes cheias, as de outrora.
Foi antes do açude, muito antes.
Um carrito verde través as águas.
Afogamento de galo, tragédia-mor.
Daqui a vista atirada a Montemor.
Em poucos anos, a eternidade.

Por enquanto, a eternitarde.
Pânico: o preço dos combustíveis.
Barafunda: o preço do pão.
Não há volta a dar ao humano.
As bestas-bélicas nunca pensam.
Há um novo Diabo-Inimigo:
é o Homem-Branco-Agnóstico-Heterossexual.
Toda a demais raça é santa.

Marcial abre loja electroméstica.
Tó-Zé rilha pêssegos furtados.
Adalberto tira brevet-d’aviador.
Jesualdo reforma-se à-maneirex.
Graciosa abre loja florista.
Carmina rói nozes rangentes.
Telma só anda de bicicleta.
Túlia tem onde cair morta.

Cite-se. Notifique-se.
Efectue-se. Envie-se.
Electrifique-se. Abone-se.
Copie-se. Arquive-se.
Parecemos diligências adiadas:
semelhamos excepções avulsas.
(Por regra, semelhamos.)
E pendemos a granel.

Inclino-me a vocábulos.
Espalho-os pela mesa.
Junco deles a cama.
Durmo-os dentro.
Adentro-os em son(h)o.
Reconvenciono-os a jeito.
Espadano sílabas capitosas.
Há mais de 50 anos o faço.

Consigno por vezes a verdade.
A verdade é a rima da pessoa com o real.
A mentira é mais fácil em verso-livre.
(Se disser verso-branco, sou racista?)
Desgosta-me a gula espectacularóide:
do jornaleirismo mormente.
Também me desgosta a má-literatura:
a que ao espelho escrevo mormente.

Embargam-se-me de salitre os olhos
quando acaso reajo a alguma má-fé.
Passa-me depressa, também Vo-lo digo.
Não mais dilação.
Não mais o-mal-pelas-aldeias.
Rumo antes à simplificação.
Amanhã ninguém me fala.
Hoje não estou surdo. Nem mudo.

Se longe, tudo te corra bem.
Se não, que o mal te corroa.
Que sejas sombra de ninguém.
Que a vida te não seja boa.
Se longe, tudo te faça feição.
Se não, que o Diabo te conheça.
Se não, que Deus te esqueça.
Mas se longe, não; e adeus, coração.

Consumamos agência de auto-execução.
Somos de uma atenção notificanda.
Nem toda a hora é execranda.
Suave nos pode ser a condição.
Livres destas peripécias?
Marcelino, Tomé, Luís Filipe, Manuel;
Delmina, Cândida, Hannah, Marguerite
(Eis-me consignando guardo verdade.)

Trivializando: vinde comigo.
Metamos juntos o euromilhões.
Tomemos café no Sílvio.
Enviemos foto de grupo ao Anacleto.
Divirtamo-nos até às vinte & trinta.
Digamos mal do Benfica & do Marcelo.
Opinemos doutamente sobre a Ucrânia.
Sejamos milionariamente tesos.

Ou então: Heidegger é capaz de se ter borrado.
E ainda: nazismo & estalinismo diferem?
E mais: nazismo & sionismo divergem?
Enforcando Eichmann, matou-se o Mal?
Estou em a posse das respostas, mas só minhas.
Interessar-me-ia conhecer as Vossas (se existísseis).
Tudo isto não passa porém de solilóquio.
Há mais de 50 anos que não.

Tendes a V.ª doutrina – pois ainda bem.
Vosso é o receituário – pois ainda bem.
De V. não difiro ou divirjo senão em detalhes.
De resto, carne a prazo todos.
Chamai-me pessimista ou incréu:
ambos os apodos me assentam luva.
Creio tanto no Putin quanto no euromilhões.
(Mas o Vladimir vale menos que 2,5 euros.)

Em virente prado, as ovelhinhas.
Na hipersuperfície, as ovelhinhas.
À hora de votar, as ovelhinhas.
De meu sono arredios, os carneirinhos.
Os tv-canais multiplicam os imbecis.
Promulgam a idiotia compulsiva.
A pobre lusa-manada chouta no pó.
E há quem chame música ao hip-hop.

(Eu não. Por mim, quando Mahler, nunca pior.)
Sábado passado, com a minha L., vivi.
Soube (de) coisas novas de gravidade.
Vi-me depois de novo a sós, é normal.
Em 1985, fui ao cinema ver a Meryl Streep.
Ainda então fruía a prosperidade.
Águas muitas sob pontes d’então correram.
Nihil obstat, imprimatur potest.

O Paulinho Aduelas tem companheira.
É-lhe mulher fiel, ele teve sorte.
Não chegaram a filhos, ela não podia.
(Ele poder, podia – mas não conseguia.)
A Micas Rolhas já vive sozinha.
Foi-se-lhe embora o marido, que já não torna.
Estas coisas acontecem muito, na verdade.
Acontecem muito – mas uma só de cada vez.

Lêdes a extensão desta versalhada
& pensais talvez que hoje al mais não fiz,
pois bem Vos equivocais, lavrei sete horas,
das-nove-às-cinco como as dactilógrafas
que antigamente havia & se casavam
mal & parca & porcamente com mancebos
licenciados em Letras como as mulheres,
águas muitas sob pontes d’então morreram.

(...)

É hoje segunda-feira-14-do-3, tempo ocluso.
Não raia o Sol, antes a nublação impera.
Eu gosto. Sincera & o mais francamente, gosto.
Tenho qualidade de hibernador, talvez por isso.
Deveras, há quantos anos durmo a vida?
No mínimo, há 35, quase 36.
Nada disto morigero como normalidade.
É coisa minha – & a que, a sós, pertenço.

Tiago Marques liga a Miguel Licínio.
Combinam obra para Abril.
São de contas expostas a escrutínio.
Por junto, já fizeram mais de mil.
Valenciana Augusta p’ra Ricardina:
– Queres ir ao chá-das-cinco amanhã?
Ricardina – que não, q’anda malsã,
que já se vai deitar com aspirina.

Da janela do quarto de meus Pais,
vejo quanto chove sobre a nespereira.
Ou pessegueiro? Ou tangerineira?
Não há janela, nem quarto, nem já Pais.
É na era dos livros do Fernando Namora.
É também na da Colecção Livros RTP.
Julgo há muito ida tal era-hora.
Mas se ora ainda a escrevo? Ninguém m’a lê.

Eis-me aqui devagarinho pensando em W.
Digo: Wenceslau (o de Moraes, o niponófilo).
Ele & Pessanha, que dupla sem par!
E deles a tinta em pergaminho: só perfeita.
Em Wenceslau, o povo-dos-barcos.
Em Pessanha, o povo-de-Camilo.
Portugal nem imagina quanto foram.
Wenceslau bi-viúvo, Pessanha enamorado de Ana de C.O.

Onde o cansaço me tombar, herói de nada:
de nada & de pátria alguma, onde tombar?
Sim, conheço nomes, forjei uma enciclopédia
imprestável (mas emprestável) & delicada.
E agora, agra juro que não prometo
(Houve aqui alguém que se enganou
– e só eu aqui estou, é o carago.)
Onde a fadiga me cortar as unhas.

O calor nutriente, hauri-o a tempo certo.
Este é o inverno entrante, a moda é outra.
O modo, também, e o tempo – incerto,
faz-se por modos nec-plus-ultra.
À flor da lembrança, ao arrepio do frio;
à cabana inexistente, ao aviador perdido;
à face de um entendimento, ou então de um verso;
tenho-me ratado de modo mui rente.

Li na idade certa o senhor Carlos de Oliveira.
Fez-me bem: parece(u)-me exemplar.
Guardo dele os livros, que vou ofertar
a quem os merece de toda a maneira.
Hoje, não conversei grande assunto.
Fiz dois testes, passei sem mor distinção.
Nada me adianta puxar p’lo bestunto,
isto é mais à base de arroz com feijão.

Quando a vida for um pouco menos aritmética,
poderei talvez clonar os velhos da minha infância,
curtir à guisa deles o sol em banco de pedra,
esperar a ressuscitação dos Gregos Antigos.
Se alguma solipampa d’entretanto
me não liquidar ali nas Urgências,
terei todo o gosto em V. falar do bel-canto
que cantaram senhoras & demais excrescências.

Sim, assistimos todos ao retorno de Z. da guerra-colonial.
Houve foguetório, o pai dele fumava Ritz.
Éramos já as crianças-da-revolução, tais éramos.
Hoje em dia, duvido da reforma curricular no/do Ensino.
Se lês mal, não vás ao lançamento de bons livros.
Como os bons livros são poucos, vai ao lançamento dos maus.
Sempre dá para te iludires leitor da alma impressa,
quiçá parente dos espíritos mais coiso, mais marcelo.

(...)

Passo a descrever um sol-poente-de-postal:
era em Julho/1970, era-me viva a Mãe.
Cirandando ambos pelo litoral,
aconteceu-me a mim – mas a Ela também –
a doce maravilha & o suave aprazimento
de Mãe-com-seu-filho, irreparável momento
que se hifeniza por filho-com-sua-Mãe.
(Q’isto fique só em verso, não o digais a ninguém.)

(...)

Tanto verso porquê? Para quê? Hã? Como quê?
Porque isto: para isto: hã: como isto:
pelo rocio que em 1973 vi cercando a base do pinheirito:
& pelas sílabas a negro sobre chapa-amarela na Escola Primária.
Qualquer coisa adversa que os totós-de-Lisboa ou os palermas-do-Porto
possam vir a advogar de encontro à minha constância,
desde já aviso que ainda dá para o torto
o direito sem recta que nem mede distância.


(...)

Oh dilação forever!




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Canzoada Assaltante