15/07/2020

VinteVinte - 40 (integral)




40.

NORMAS DE MAIO

Coimbra, sexta-feira, 1 de Maio de 2020




Eis-nos Maio. Meu mês natalício. Mês tão bom quão os demais para exercício do meu – chamemos-lhe assim – palanfrório, o meu palavreado não-raro palilógico, repetitivo em palavra, ideia, estilo até. Este quarto sirva de palatinado, jurisdição de confinado ainda não finado.

(Muitos foram os anos & muitas as gerações que perderam Bach & Gil Vicente. As obras estavam encarceradas em pó de velha madeira susceptível dos piores carunchos: ignorância & olvido. Kafka & Cesário não foram incinerados porque Max Brod & Silva Pinto etc. Temos nós – é nossa, se & quanto a quisermos – tal fortuna. Há mais nomes & obras que salvar. Isso eu sei. Mas quais? Há que fazer por saber.)

Maio, lá fora uma pouca (mui pouca) de sol logra romper a cinza movediça. Recordo o primeiro 1.º de Maio livre, o de 1974, alinhámos na manifestação como família, há uma fotografia desse momento, ali em frente à Escola Jaime Cortesão, o Jorge era vivo e está na imagem, vivo & feliz. Este é outro Maio, aquele não volta, esta é a Lei. Brama o vento. Não é chilido de pássaro mas sim uivo grosso. São as cinco da tarde. Pus em demolho uma postita de bacalhau para ser alho-acoentrada em açorda aguada. Resulta caldo bom, perfumado, forte & delicado ao mesmo tempo. Assim vai a mente: da fotografia histórica de há 46 anos para um projecto de petisco sem história alguma. Também é da tal Lei de que acima V. falei.

Um documento me espera leitura, sublinhados, digestão & reciclagem. É rico em vocabulário técnico-científico. Muitas palavras me esperam bom trato. É a minha vida, não mero entretém de ocioso. Não me justifico: apresento-me, tão-só. (E tão só quão fiz, felizmente, por merecer.) Mostro as cartas – e jogo-as na mesma. Nem valentia, nem pusilanimidade – sim a vida-por-escrito, linha a linha, até que a Lei etc.

Recordo:

O vento forte nos canaviais robustos, entre o derradeiro lagar de vinho na aldeia P. & o primeiro lagar de azeite na aldeia A. Eu fiz & refiz esse caminho eterna e ternamente. Há muito o não refaço, por outras bandas me desbando, outras aragens me desairam. Aquele vento privado, íntimo, meu, dando de varejo nas canas altas, espessas, raianas, fabulosas. Uma vala já então poluída sondava, como maligna serpe, esse meu segredo, esse meu éden-de-pobre. Quando, agora-século-XXI, me deito & medito à toa, é muitas vezes aquele vento naquele canavial o que à janela de hoje brama. (Hoje, 1974? Também. Recordo – ergo, minto. Mas sinto.)

Ao parágrafo anterior (a que dei término entreparentético) acrescento ainda que:

Recordação é coisa treda (id est, traiçoeira) & trefa [ou trêfega – como Nemésio diz do nosso D. Afonso III (in Jornal do Observador, pág.ª 249). Seja: ardilosa, astuta, buliçosa, inquieta, traquinas.] E crêde-me que lo é deveras & de facto. 

Pessoas levando o que as leva, digo: a vida, o interlúdio, a morte, tudo à guisa de precária brincadeira com o fogo.
Sei nada delas. Sei pouco delas. Sei alguma coisa delas. Espelhamo-nos & espalhamo-nos. Seguimos a Grande-Régua – que Norma é.
Algumas são belas, algumas pessoas são portadoras de beleza. É verdade. É tão verdade – que mesmo mortas seguem embelezando estas vargens, margens, aragens & paragens. As pessoas vivas são menos do que as mortas. Em número, digo. O planeta é cada vez mais escasso para tão inflacionada população – mas os mortos continuam a ser maioria (nem sempre silenciosa).
Berçários & túmulos irmanam-se impiedosamente. Os animais não-humanos moram noutra dimensão, embora possamos matá-los. Não podemos humilhá-los, porém – como alegremente (des)fazemos cada-dia-a-toda-a-hora-pelos-séculos-dos-milénios.
Nomes habitam-me, rumorosos. Uns, mortos (os mais, como hei dito): outros, nem tanto (vamos lá com calma).
Américo C., que conhecia muito o bich’umano. Luís M.N., consumido de febres gráficas & más-companhias. António B., mitómano & chapeleiro-louco sem Alice possível. Gente como esta, isto é: única-em-si-só.

        Já nove minutos se (con)sumiram da última hora do primeiro dia do primeiro Maio da década de 20/XXI. Sei já como (ou com que linhas) vou começar, manuscritamente falando, o segundo dia do (meu) mês. Ocorreu-me há pouco, em fugaz surtida ao mijatório. Pergunto-me se serão assim tão diferentes dos outros todos – digo: confinamento, se & quando cotejados aos meus prévios perfactores de 56 anos, contados em redondo no próximo dia 8. Mera curiosidade: 8 de Maio de 1964 foi (também) sexta-feira, como o próximo será. Às oito da manhã, fui arrancado a fórceps do único (ou último) paraíso que conheci. Esse confinamento – o uterino, o da placenta, o fetal-astronáutico – era perfeito. Este de agora é estigma de um mundo irremediável, poluto, sobrelotado, quase inabitável. Involuntária autoprofanação, isso de nascer. Ser dado à luz – diz-se. Ser entregue às trevas – sugiro eu. Vinte & sete minutos sobre as vinte & três horas. Sempre em frente, rumo ao que se sabe.

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Canzoada Assaltante