01/07/2020

VinteVinte - fragmento do dia 1 de Julho de 2020


Cândida Leite
(Pedrulha do Campo, 1903-1994)



Faria hoje anos a senhora Cândida Leite.
Falta-me uma mão de anos para ser da idade
que era a dela quando nasci à luz d’azeite
da filha dela, mãe minha, nesta cidade.

Faria mas não faz, deixá-la dormir.
Defuntos somos todos garantidos à nascença.
Ser neto é-me trabalho que descompensa
a tença que é nascer sem ser p’ra rir.

Recordo-a de luto perpétuo pelo marido,
feroz cão-de-quinta p’ra consumição da casa.
Avó-ave de perene quebrada asa,
veio por esquecimento & partiu por o olvido.

Nonagenária, ainda assim, quando se foi.
Eu gostava do riso dela, de velha infanta.
Nada enfim lhe custa já, já nada lhe dói.
Estive há tempo junto à sua campa:

águia perfilada me semelhou, não altaneira
porém, antes humílima, não de rapina.
Difícil não ver nela a mesma menina
que filha dela foi - & minha Mãe inteira.

Lá dormem ambas em próximos chãos.
Os maridos também – como se irmãos.
Um-de-Julho, cândida Cândida, parabéns.
A sós & em sossego, nem ossos nem cães.

Nós por aqui, todos bem.
(Ou não – mas não faz mal.
Cada um só consigo é alguém.
Quarta-feira, 1 de Julho; Coimbra, Portugal.)

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