23/03/2020

VinteVinte - 4 (integral)





4.

FIGURAS DE SENTINELA

Coimbra, terça & quarta-feiras, 14 & 15 de Janeiro de 2020



I

Vento noctívago envolve a minha casa
Ancestral remoto cântico ele me soa
O planeta vive além do que viemos ser
Fala-nos mas não parece escutar-nos
É preciso que tal nos não assuste
A natureza do real é a real indiferença
De menos valemos no dito cômputo geral
Hemos a entreter a passagem
Vai usando mais força o vento lá fora
Vale a vela não t(r)emer aqui dentro.

O calendário como a árvore despede folhas
Nós somos os dias possíveis, por mais improváveis
Brincamos aos deuses como crianças criminosas
Uma rajada de vento nos leva sem preço
A Beleza rarefaz-se, é demasiado ontem ela
Esse vale defronte não aceita casas
Lápides são quanta escrita ele consente
Sentado na cama confir(m)o o despovoamento
Na vida o meu papel é este papel
Tarde de mais para usar outro corpo.

A tal voz antiga oponho a antiga viva em mim
Não faz mal que pareça ser só de lápis
Palavras, trá-las o vento
Aceito-as como me aceitam as pombas o pão.

II

Um homem retira-se no campo a sul do país
Resguarda-se em casa de pedra & madeira
Dois veios subterrâneos dão-se a pequeno lago
O país do homem não é o-meu, é o só-dele
Entre nós há apenas este papel sem mais
Não é muito nem nada mas quanto basta
As cidades foram desertadas, são já só nomes
Os anos são todos a descer como ladeiras sem topo
Um dia é em si mesmo uma pátria peculiar
Um homem é essa diária pátria até de noite.

III

Choupal & Sherwood acabam fundindo-se
Não se dá nisto passe-de-mágica barato
Trata-se tão-só da vi(d)a que me tracei
Fundir bosques em papel, viver para eles mais que deles
Sob colmo & entre tábuas a animal vida
Entre capas papéis relevando a direita
O vento da noite fez a cama à terra da manhã
Bem mais triste era decerto Paris em 1940
Chamamos agora ao aqui que nos resta
Cada um trate enfim de sua festa.

IV

Acede-se a locais propícios sabendo aprender
Sendo claros os limites impostos ao corpo
Cabe à mente ser imperial & imperiosa
Na infância demoram pétreas as fundações
Nela o país vive de tesouros nomináveis
Corteses modos enformam já brandos gestos
Tudo é aprontável a olhos limpos
As artes resgatam a novidade de cada liberto
Aves viajam o país aéreo, a pátria alteada
Conhecê-las é ir com elas pela subida palavra.

V

Vai a coligir mantimentos um senhor Guilherme
Idalina a mulher é doente, não sai de casa
Guilherme administra os proventos particulares
A mulher entretém o corpo entre retratos
Já de torno vem o marido cuidadoso cuidador
É um filme regular como dantes as estações-do-ano
Caminha ele a passos pela paciência amestrados
Vem içando-se um vento tractor da noite
Murmuram já as áleas arbóreas do trajecto a fazer-se
Guilherme chega-se a Idalina, fá-la menina, agasalha-a cerce.

VI

Figuras de sentinela ao chão do mundo
Confir(m)o-as da janela apenas entreaberta
É tudo um ingente quintal, esse mundo
Vale-lhe o vento reordenador, cantor, vigor
A estas horas e nós por aqui ainda
Amanhã é a mais talvez das palavras
Este corpo é lenha e nós ardemo-lo
        Vale este vento dando alma aos elementos, às sentinelas. 

Sem comentários:

Canzoada Assaltante