22/03/2020

VinteVinte - 3 (edição truncada)







3.

NO DOMINGO DA IDADE

Coimbra, domingo, 12 de Janeiro de 2020



I

Iça-se-me do chão a idade já ínclita
Aos papéis tenho eu andado a vida toda
Egrégio me não sinto mas que se fôda
Eriça-se-me na nuca a vida súbita.

Toco em gaze etérea teu rosto demorado
Sou, olha, este do lápis sem comércio
Para aqui vir poupei o meu sestércio
Já a noite subo em plano-inclinado.

(...)

Deixemo-l’ora a ambos, curtamos a sossega
Apartada velhice nos desagrega
Zero nos vale o chorar oceanos.

II

Troquei algumas palavras com Duarte
Um do trio filial do grande Ruy Belo
Foi por & para mim como estandarte
Erguido ao que me na vida é singelo.

O mesmo fiz com Armando Silva Carvalho
Poeta outro grande ele também
Era então ’inda viva a minha Mãe
E eu ’ind ’era útil, tinha trabalho.

É domingo, vim dar a volta, vim a versos
Pouca gente na rua, assim ’nha vida
A qual por certos factores mui diversos
Se tem feito sumária & até comprida.

Cumprida é q’inda não, não sei que falta
Tenho de perguntá-lo à minha malta
Elos que ainda tenho na corrida.
(É palavra q’inda não tenho respondida.)

III

Esta senhora diz que se abastece p’ra todo o mês
Na hipersuperfície ali ao pé da capela velha
Manda à merda o cheque que por baixa da mesa
Recebe do alemão dono a quem faz a limpeza.

Diz ela que sempre lh’acaba por compensar
Não andar à toinha p’r’aqui-p’rali
Promoções, é tudo igual em toda a parte
(Mas eu é que troquei palavras com Duarte).

(IV)

(Domingos houve já em que eu ia
Almoçar à minha Mãe, já então viúva
Éramos só(s) – e o que chovia
Era então sem sal, tal pranto à chuva.)

V

Compreendo os adoradores do Verão em bronze & ouro
Eu sou d’outro totobola bem mais invernal
Gosto de brumas inglesas mas sou de Portugal
Se calhar hei delapidado tão bruto tesouro.

Peixe n’água sou se acaso chove
E parnaso canta vento nas arestas
Tragédias alheias são-nos festas
D’egoísmo o nascer se mal recobre.

Vim desfazer-me gente nestes areais
Canaviais vergam a dor da cerviz
(Pelos olhos, Mãe; p’lo Pai, nariz)
O mesmo nada somos sem menos nem mais.


VI

Sobe esta ladeira sem pressa de destino
Descuida a alheia ’nóia, trata da própria
Pandora abre as pernas à Cornucópia
Ali não servem mal, ó meu menino.

VII

A praceta macadamaram – mas pouparam
O pé da oliveir’antiga q’ali viceja
Bem tal fizeram, q’à alma beija
A visão de tais ramos, mui nos amparam.

O bairro é sossegado, não há ciganos
Os anos vão matando ’vagarito
O sol arde d’empenas de granito
Erramos perdoados desenganos.

Um par de pardalito na calçada
Lê co’ biquito o chão cujas migalhas
Lhes são o duro mel à mão-beijada
De Deus, esse patrão das vis canalhas.

(...)

Deram as quatro já (que são dezasseis)
Nem sei por que raio abrem aos domingos
Os donos deste estanco, gente aos pingos
Acorre a gastar só dois-mil-réis.

(Mas a minha oliveirita
Velha-relha-&-bonita
Resiste ao macadame
Em mim tem quem na ame.)

VIII

O teletransporte existe há milénios
O múltiplo-cego-clarividente-Homero-aí-está
-Que-mentir-me-não-deixa-a-demonstrá-lo
A senhora minha Mãe liga-me lá de 1924
Atendo, ó senhora Mãe, aqui seu filho, ano VinteVinte.

Gasto os meus sestércios em limpa cacofonia
O corpo um dia falha-me, há-de ser dia
Talvez de noite, isto é como, digo, Queluz
Ruy Belo veio a sós a casa preparar candidatura
A morte o entorpeceu, ser Belo é tal Beleza?

É Domingo-em-Coimbra, não há mor tristeza
Que a do Domingo-Coimbrão, este d’Eu-sem-Pais
Olho as pedras gastas, soletro as toponímias
(E as lágrimas não-choradas são exímias
A dar soluço-ares, & uis, & ais).

(...)

Eu não escrevi o Alexandre Bissexto mas disse-o
Ao Autor mesmo, em Coimbra, ali no Tivoli.
O homem aceitou-me a franqueza-
Havia versos na mesa, a coisa correu bem:
E eu era limpo como filho da minha Mãe.

O teletransporte existe etc.

IX

(...)

Sem comentários:

Canzoada Assaltante