19/03/2020

CADERNETA PRETA - 40 (final da série e do Ano)





40. Cuidado com os Balancetes


a) Segunda-feira, 30 de Dezembro de 2019


Claridade. Despertei estonteado de tanto, a noite toda, ter sonhado. Convalesço ora disso, ora que é a penúltima manhã do ano – e desta caderneta também. O número é convencional – mas também uma espécie ordinal em plena desordem pós-nascença. De momento, porém, mal consigo escrever. Hei que sacudir a neblina interior, pós-onírica, fantasiosa – e má, digo-o. Não foram pesadelos, foram filmes desarmantes, exposição de vulnerabilidades, coisas sentidas menos do que ressentidas. Acordar é preciso. Há claridade no mundo – e ainda há mundo para mim.

Cada um consigo mesmo. Alguns pontos de contacto tremeluzem, não adiantam muito, também não atrasam.
Por fim, vou fazendo taxidermia de instâncias verbais. Isto dá-se a si mesmo, não tem de dar em algo. Não curo dessa pragmática. Instâncias verbais- sim, isso. Fiz-me este cargo, dei-me esta carga. Assim é.

António Belarmino Moura Costa? Sei. Era o homem da bicicleta, praticava ao longo das vias ribeirinhas, mormente da margem-esquerda do Mondego. Era de manualidade muito hábil, consertava com minúcia coisas avariadas, repunha-as como novas na prática dos dias. certa serenidade não desprovida de certa tristura. Maneiras suaves, discrição de palavras. Sustentava-se mercê de trabalhos que foram variando no tempo – como a música ouvida ao longe (ou dentro). Morreu com 62 anos, não deu trabalho, pronto a ser esquecido. A bicicleta ficou para o vizinho Damião José Marta Figueiras, que sem ser por mal a deixou enferrujar no barraco do quintal, anos depois deu-a ao sucateiro Bernardim Tomé Gil Henriques.

Escrevi muitos nomes nesta caderneta (também) porque atravesso de momento um deserto deles. Quanto à Cidade que me proponho escreviver a partir de Janeiro, essa será menos a que é do que a que antes-fosse. É meu direito associar-me ao que talvez seja dissociação. A verdade é que o presente nunca me interessou muito – passado & futuro são mais fortes.

(O meu Gato foi operado esta manhã, vou busca-lo às 17h30m. Estou ansioso: há muito que não temia por amor.)

Preciso de um sítio aberto ao céu de que sol venha sem brutalidade. Hoje não me apetece bruma – bem me sobra a que sonhei toda a noite.

Afonso Carlos Messias Porto: 1918-1973. E agora nada.

O homem de olhos azuis à extrema do balcão
Foi quando menino meu condiscípulo escolar (*)
Éramos já então ou não os homens aqui (des)encontrados
Ao cabo do ano p’lo ocaso dos anos?

Cerramos as mãos, somos cerimoniosos
Mas p’los nomes nos tratamos sem menos nem mais
Já dobrámos ambos vincadas curvas
Vingadas não sei se foram, talvez ele saiba.

Casa velha entre oliveiras sem gente há anos
Olha-nos de cegos olhos negros sem janelas
Azuis os dele, castanhos os meus
Gostamos de rever-nos, mal nos não faz.

Eu tenho isto dos versos, ele tem um fiat-uno
Temos existido, havia afinal vida além-escola
Nenhum de nós porta já sacola excepto eu
Devemos não ter vingado, nenhum de nós tribuno.

(*) Ainda o Taí alinhava no Boavista e o Vaqueiro no Leixões e o Camolas no União de Tomar e o Móia no Oriental e o Benje no Farense.


b) Terça-feira, 31 de Dezembro de 2019


(Cuidado com os balancetes próprios da quadra. Ano Velho, Ano Novo, tretas & tretas. Melhor ir pelas letras. Esta Caderneta Preta acaba-se hoje. Cumpriu algumas milhas mentais. Não lhe peço mais.)

Prossigo relendo lidos de há vintes & mais anos. Faço bem. Percebo mais, agora.



FIM DA CADERNETA PRETA

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Canzoada Assaltante