15/03/2020

CADERNETA PRETA - 37 (integral)




37. Voltas Papeleiras


Quinta-feira, 26 de Dezembro de 2019


Preparação de saída às ruas de papel. É hoje. Está para breve na hora. Custa-me deixar o Gato por estas horas próximas. Tem de ser, porém. Há luz no mundo, o Sol recebe. Banheira, lâmina, espuma, espelho, atavio do cinquentão. Cheirar a sabão & a versos novos. Não é mau projecto imediato.

Cá fora pois. Sol da glória aguarelando a Casa do Mundo, a rodos & sem aceitar senão franqueza de tudo a Ele. Viver não parece processo emaranhado, ou labirinto burocrático, ou teia de mais aranhas que fios. O momento é mais primaveril do que o calendário, anacrónica abstracção afinal, diria se o deixassem falar. A meu ver, nem outono houve. Tenho muita saudade das perdidas quatro estações. Nada posso fazer quanto a tal derrota. Posso tratar dos papéis que à rua me convocaram, é tudo. Pouco que seja, tudo é.

Dos três, dois (papéis) resolvi. O restante fica para amanhã. Voltando todavia à questão multi-sazonal de antes (ou dantes), sinto muita falta de quando um dia de Dezembro, solar embora, oferecia frio. Há cinquenta anos, o frio era bom, o frio eterizava, por assim dizer, a luz mesma & a própria respiração. Disse eu: eterizava, não eternizava – infelizmente ou coiso.
Resolvidos alfim os tais dois-de-três documentos, arresolvi-me a virotear por esta minha cidade sem outro remédio, ela, que o de ser Coimbra. Havia câmara-ardente em S. José, um senhor que foi Alcino, 78 anos: duas crianças rosmaninhavam o passeio defronte à Escola Brotero; delicodocemente, um por mesa, folheavam jornais quatro cavalheiros que poderiam ser (e, da doutrina, são) meus irmãos: velhos, rotundos, caixas-d’óculos, roupas mortiças, sapatos não maus de todo.
Fui-me à pinga destilada no Viaduto, morei lá o tempo destas linhas que, prosa embora, versos ensejam ser. E então:

Migadas vòzinhas
Ao relento dentro
Contam ’stòriazinhas
Que me dão alento.
Rosto não-plural
Olhar singular
Made in Portugal
Mas não p’ra casar.
Violeta a sós
Rosa desabrida
Cravinho da voz
Pimenta da vida.
Gosta mais de broa
A avó antiga
Bem foi minha amiga
Vida então boa.
Vida é vindima
Vida é vindicta
Nem sempre invicta
No abaix’acima.
Bota aí fermento
Coze devagar
Infante momento
Só morrendo cegar.
Chegar sem mais armas
À vil cidadela
Rosa amarela
De pétalas ermas.
Eu com um sobrinho
Incerta uma vez
Não estav’eu sozinho
Já não sei o mês.
Nem o ano sei
Se calhar sei nada
Um gajo é rei
Nação esvaziada.
Volto muitas voltas
Trato de papéis
’ind’hoje são soltas
Pratas, ouropéis.
Eu já vi o mar
Montanhas já vi
(Digo-to a ti
Que estás por chegar.)
Vindimas ao sol
Húmus de bom negro
Sobe em sossego
(Macia & mole
A promessa vã
Fica aqui, meu Pai
Um filho que sai
Perde a manhã.)
Crèmam sôr’Alcino
Hoje em Taveiro
Chamai-lhe destino
Não é o primeiro.
(Andaluza & triste
Que não de Sevilha
Mensagem à filha
Faz que não existe.)
São quantas broinhas
Delicado mel
Que cospem grainhas
Sabendo a fel?
O Natal s’foda
Mais telefonema
Que dizer é poema
Q’à morte não muda.
O engraxador
Tonto d’heroína
Diz ele: Ó menina
Faça-m’um favor
Guarde-m’este saco
Q’eu faço de macaco
Sem pão, sem tabaco
Guarde-m’este caco.
Só-singular a lei
Da caligrafia
Resposta não hei
Da filha q’havia.
Era em meu nome
Nome de meu Pai
Quem a mim s’assome
Entra, já não sai.

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Canzoada Assaltante