19/01/2011

Ideário de Coimbra - 147


© F.J.
Alqueidão, Agosto de 2010



146. NO TÚNEL
Coimbra, terça-feira, 18 de Janeiro de 2011

O túnel dos dias, das noites descampadas,
das casas móveis, das carretas paradas.
Estes dias, noites como esta: quietos
movimentos da mente entre luzes
que, como fósforos, adensam mais e mais
a escuridão derredor, a começar pela
de dentro. Um andar por aí aos limões,
às laranjas, subindo a estrela da mão
às estranhamente esquecidas árvores citrinas,
que são verdes e de ouro como meninas.
Um, digo-o, apascentar-se em antros a que o mofo
dá pátina de gruta e/ou museu, ou eu
nem sei quanto digo, se, no que digo.
Bastaria não insistir tanto para existir um
pouco mais? Não o sei – e digo-o, também.
De dentro. Um andar por aí aos limites,
às aragens, subindo estranhamente citrina
a mão às esquecidas estrelas,
que, meninas, são verdouras e belas.
O túnel.
O túnel dos dias, das noites almadas,
das asas falíveis, das grutas gretadas.
Uma terça-feira, um sábado, um rapaz
Frederico pai de um rapaz Francisco,
rápidas explosões oblíquas no lago
negro da noite (uma destas noites, um
dia destes) – e a mania dos versos
como fósforo.
Pode uma mulher até feia embelezar um sonho?
Dois cães mortos fingir podem dormir sobre relvado?
Faias e álamos são ou não belas palavras-arvoris?
E um homem sozinho ante um cálice de anis?
Em Sintra, certa ocasião, acabou-se-me uma luz.
Só se sabe depois de acabar (como a saúde).
Hoje, vivo não/de, não/para, não/com, mas/vivo.
A Cidade vive de aquários e de capoeiras.
Roubei uma laranja dulcíssima à vinda
para bandas do S. Paulo. A pessoa pode ser.
A pessoa pode não ser. Pode querer ser. Pode
até querer não ser – digo – seu/dela
mesmo contrário. Há sempre uma literatura
abusiva no modo como a vida, enfim,
como a vida. Um andar por aí aos limões,
uma íntima secção resistindo à pusilanimidade,
à escória, à escumalha, à sinistenebrosa
maioria humana que, buscando fazer
da merda ouro, faz do ouro merda.
E a merda acumula-se no túnel.
Nos maus livros também, aliás. Os
mais-vendidos e a palha partilham
ser fardos leves e para burros.
De dentro. Poucos dias para tantas noites.
Revoada e voragem. A cor grená e a boca.
As tetas das cadelas (vivas) e os postos de
abastecimento de combustíveis (matadores).
Ou um pouco de comida, só, só num quarto
entorpecido pelo frio natural da solidão
dos móveis, dos apetrechos. Um sabor
a canela arrefecida na cana da estante
fraca (quem apreecompreende isto?).
Diálogos de sonho na minha cabeça
que envelhece mas não dorme:
–  Esta jaqueta de ganga – digo eu
– é boa, quarenta e cinco euros,
boa.
Ela diz: – Sim, qualidade garantida,
tamanho ideal para o seu
corpo.
Eu: – O meu corpo?
Ela: – Volte cá.
E eu digo que: – Nem sempre
posso comprar, só se voltar
por si.
E ela: – Então, volte.
E eu levo a jaqueta – e nunca
volto: nunca se volta ao mesmo
sonho, à mesma ganga,
só ao mesmo túnel
mesmo.

2 comentários:

fj disse...

obrigado pela citação fotográfica. fica aqui bem.

Daniel Abrunheiro disse...

Sou eu quem agradece, artista.

Canzoada Assaltante