10/03/2010

A Fonte do Areal não só Água Dá

Louriçal, noite de 9 de Março de 2010



A Fonte do Areal não só água dá, rosas também.
Rosas são mecanismos vegetais que perfumam o ar e as águas e as raparigas pré-nupciais e até os limos que enredam as palavras.
A Fonte do Areal é bonita de se ver por ser bonita e antiga e inútil como tudo o que é bonito e antigo e areal.
Não digo isto por mal, por pessimismo sim e apenas: é que ando a escrever um livro, que quisera bonito e areal e perfumado e rosaéreo.
Esse livro ainda me não saiu – e aos anos que ando nele e para ele, carago.
Salva-me a prévia certeza da crítica inexistir, em caso de tal livro sair.
Agora, à boca da amarga noite, sei devagar.
Passei a Fonte do Areal, vi um homem vestido de azul-negro.
E então tive esta espécie de certeza colorista – Certas andorinhas são de um negro tão intenso, que se volvem azuis: e a elas acontece o mesmo que à neve de outros dias, cujo branco, por excessiva pureza, se volve azul também; nisto, vejo nitidamente um campo de girassóis de outro ano – e são flores tremendas, prenhes de seiva e de amarelo e de, lá está, negro; e quando escrevi “flores tremendas” – foi “seres tremendos” que pensei; porque os girassóis são seres – mas também mecanismos, como as rosas e os homens vestidos de negrandorinhazul na noite.
A Fonte do Areal é na vila do Louriçal.
É um lugar recolhido como um historiador reformado.
Reentra nas manhãs com uma frescura de rapariga muito nova mas já não criança.
(Neste ponto, eu deveria talvez pôr aqui alguns nomes de escritores estrangeiros para emprenhar o leitor da suspeita de grande cultura do narrador – mas não: nem suspeita, nem cultura, nem escritores de fora.)
Ouço e escuto: o jovem homem chamado Helder X. conta a um cliente uma peripécia relativa a um caso de miséria que envolve um gato cagão e uma casa enxovalhada com viúva dentro.
Percebo que a casa viúva é, por assim dizer, uma barraca de tijolo.
Escuto e ouço para olhar e ver: e para dar a ler, que me não sobra imaginação para muito mais.
Pois, a Fonte do Areal não só água dá.
Também dá que escrever a um homem sozinho num café de província.
Antes isto, enfim, do que andar na droga.
Rói-nos devagar o Tempo?
Sim, o Tempo devagar nos rói.
É possível, ainda assim, conhecer alguma coisa e alguns alguéns enquanto o Grande Roedor não acaba o trabalho.
Não podemos – nem desistir, nem d-existir.
O meu caso nem sequer é grave.
Graves – são as coisas sérias.
E eu não sou um caso sério.
Sisudo sim, mas não sério.
Sério – é a Rodoreda.
(Cá está: escriba de fora – e catalã, ainda por cima.)
Vale-me que, quando há pouco disse aquilo de as rosas perfumarem as águas e o ar, e a terra, falava a sério, embora a minha vida não seja o que e como falo.
Ou se calhar é.
Mas seriedade sempre tem sido a minha demanda e o meu graal ao tempo mesmo.
Que a gramática me surja como únic’última ferramenta, azar meu e fortuna minha.
Os meus ossos são avoengos – e mais do que eles isso as palavras que (p)osso.
Tudo isto tem tudo a ver com nada: eu sei, carago.
Mas que me resta?
Um telefonema de alguma das filhas?
Um bilhete de comboio para algum descampado sem apeadeiro?
Oh sim, carago, um bilhete, um telefonema.
Agora, peito à bolina, quilha adentrando a taprobana minúscula desta província, desta fonte e deste areal.

2 comentários:

Joaquim Jorge CArvalho disse...

Que te resta?
Tanto, Amigo! Aliás, tão excessivamente tanto para o tempo que (nos) resta.
Vives, escreves. Vivescreves. Andas a cumprir um ofício que é simultaneamente um destino.
Azar teu, fortuna tua.
Fortuna de quem te lê!
Abraço!
JJC

Filipe disse...

Daniel

Tenho-te lido.
Estás igual. Como hei-de dizer... Grande.

Abraço.

filipe

Canzoada Assaltante