02/01/2009

VAMOS POR PARTES - versalhada de alto teor patriótico





I. Parte da Casa

Pombal, noite de 29 de Dezembro de 2008

Deixo uma parte da casa pelas ruas
Pelas ruas deixo o caminhar em tesoura dos ébrios
Pelo caminhar deixo ao novo mundo o mundo velho
Pelo mundo me deixo
Pelo deixar faço a casa.

*

Uma pessoa mancomuna-se com o coração
e ele sobe-lhe aos olhos como uma pedrada na água

Uma pessoa é todas as caixas de correio que desabitou
e uma pedrada na água é não ter aonde lhe escrevam

A cozinheira não se importa com o jogo na TV
e ter cortado menos batatas de manhã não fazia mal algum

Houve os Gregos há os gregos houve os Iberos há os espanhóis
e a gente foi sempre a gente foi sempre a gente.

*

Na rua em que cresci não havia samurais
nas outras suponho também não
Acreditar em Deus deve ser como crescer
em ruas pejadas de samurais
não sei.

Hoje a rua em que cresci continua toda na rua
deveria ter direito a uma casa a minha rua
mas isto nem para as ruas está fácil
de modo que
Deixo uma parte da minha casa pela rua.

*

Um samurai é um cavalo sentado numa espada
que chama burro a toda a gente em japonês
Não eu não acredito em Deus.

*

Uma pessoa está mais para lá que para cá
e nem cá é o lugar do coração
o sítio da pedrada.

*

A luz é água a água é luz
a noite sobe a praia bebe a areia
nenhuma estrela nos será diferente
a cada estrela indiferentes seremos

e no entanto

somos luz que é água
que é luz que é noite.

*

Um dia destes estive para telefonar-te
mas há sempre o problema do telefonema
o problema da longa distância.

*

Aquele homem é um caso perdido
Cada homem é aquele.

*

Cada homem é

no entanto

cada homem é aquela luz
aquela água aquela praia
aquela noite
um dia destes.



II. Parte da Noite

Pombal, noite de 30 de Dezembro de 2008

Ó escurecida rosa comedora de sonhos, ó noite
muito escura e muito branca
ó tua tinta permanente, narrativa noite:
esculápia prosápia ínclita magistral minuciosa
escurecida comedora rosa.
A ti não logro deixar pelas ruas.

*

Em cada pessoa triste
a tristeza feita pessoa.

Cada pessoa cada candeeiro
cada vela cada pessoa parte
de sua noite parte
para as estrelas eléctricas.



III. Parte das Estrelas

Pombal, manhã de 2 de Janeiro de 2009

Carta pessoal das estrelas eléctricas – eis
o que ando a escrever.
Estrelas, bilhetes de parquímetro,
industriação labial, manhãs feitas
de papel-de-água – eis
o meu mundo.

Minha topografia ázima, meu eléctrico coração,
o meu coração é uma rulote de bifanas
ardendo gelos e gritos de porco em antecipação
da degola das noites e das semanas.

Estou tremendamente feliz, é sexta-feira,
zunem na via rápida os fittipaldis assassinos,
passa uma mulher-barco carregada de tangerinas,
não estou a pensar em nada, parado passo
eu também.

Sim, o eu-corpo funciona, mesmo comigo a bordo.
Tenho comido pouco, nunca fui gordo.
Tenho outro livro de António Osório,
a felicidade raspa-me a janela qual ramo.

Que me lembre, nunca andei às gajas.
Coleccionei o trevo, juntei as unhas,
recebi palavras gentis, frigi e infringi,
o meu caldo de galinha sai aveludado.

Toco agora as estrelas arrefecidas,
sei a cotação da prata e o valor da merda:
tudo é dedutível – e ainda é cedo
para ter morrido, para haver nascido.

Furiosa vela branca adeja na linha do mar,
como poderia eu entregar-me à morte
esta manhã? Não seria capaz de desunir
as sílabas do teu amor, da tua confiança.

Uma pessoa é uma instalação de bandeiras,
sabes, como as bandeiras à porta dos hotéis pobrezinhos,
uma pessoa é um turismo para dentro,
digo-to eu, que tenho viajado montes e vales
e nespereiras e poesia portuguesa setecentista.

Florações muito aquosas: olhos pelo chão,
bocejar à chuva perto do tribunal, além
o mercado do peixe, galinhas em caixas
aflitas de pintainhos sem lâmpada quente,
advogados jovens gravatam petições e vermutes,
como eu amo tudo isto, estar vivo ao pé
de tanta água, tanta pátria.

Portugal todo de repente na professora primária
com seus patinhos de bibe em visita
à fábrica de bolachas gimnodesportivas.

A loja dos chineses sempre aberta,
o maoísmo reciclado em bricabraques de plástilástico,
ele não há feriados para esta gente multimilenar,
comem arroz e vísceras de andorinha
e sorriem em silêncio suas manchúrias
íntimas.

Casadas lusitanas galinholam cabeleireiros patuás,
canecas de louça benficasportingam escaparates,
olha o lírio de celofane a treze a molhada,
olha o caldo verde rosmaninhando alguidares,
olha o nosso Portugal-alvíssara-no-país-
-das maravilhas.

Maravilhas, quais estrelas, eléctricas:
mão que grita verniz escarlate empunha telemóvel,
vendedor de lenha palitando um molar azul,
mediador de seguros com sapatos verdes,
animais furta-cores caleidoscopiando transparências,
toda a vida trinta anos Mário Botas,
toda a vida vinte e sete anos Sebastião da Gama,
amarelo, branco, rosa, lilás, roxo, preto, branco.

As hamburporcarias pejadas de adolescentes,
a cosmogonia estatelada do pintor de paredes,
a Suíça acenando ao longe chalés e berças,
as mulheres todas iguais, todas com madeixas de hena,
ena ena,
o cavalheiro socialista empregado no banco
cheio de joanetes ideológicos,
os tomates padrinácios do senhor da cambra,
o papel branco cheio de versos para te escrever,
rumo às estrelas.

Não falta muito para que meio-dia seja,
nesta terra há menos pombos do que esperava,
ando com os bolsos cheios de pão e nada,
terei de ir ao rio panigratificar os peixes morenos.



IV. Para uma Geografia Patriótica,

nada como Versos Toponímicos ou Assim

Pombal, noite de 17 e manhã de 18 de Dezembro de 2008

1

À vossa é igual a minha vida.
Muda de sítio, tão-só.
Um quase-nada de Sesimbra,
Mafra disso um pouco mais,
meia hora de ar respirado em Santiago do Cacém,
um lapso na tristeza tido em Oeiras:
à vossa praticamente igual, portanto.

Cada dia procuro, como vós, a diferença.
Nada.
Nem à vossa idêntica mas igual é a minha.
Os mesmos frascos altos
(arroz, massa, farinha, açúcar, sal, feijão)
na similar bancada da cozinha.
O sofá mesmo ante gémea lareira,
na sala igual.

Claro que, enfim, Sesimbra, Mafra, Santiago, Oeiras
etc..

Vossa, minha, igual
e Portugal.

2

Manter casa e, em casa, prateleiras manter
com fólio-sistemas roçadores de metafísica.
Isso e ter vizinhos em caso de urgência.
No mais, uma eira e uma laranja:
laranjeira.
Gatos bailarinando cercanias domésticas,
notícias próximas relativas a promoções preçárias
(precárias),
um serviço de louça e outro de alumínios
(além de alusões vagas a montes hermínios)
– e sabedorias breves:
os bons-dias perpétuos,
as morredouras boas-noites,
o pré-congelar o tomate de tempero para mais
fácil arranco da pele em água,
a nódoa do coração que não sai nem com limão,
o nada-de-que-viemos-para-que-vamos,
da Gama Sebastião.
Isto e Setúbal, uma vez,
eram as sete da manhã.

3

A campanha de sobrevivência do país-Portugal começou
– como a toda a gente, sem excepção, acontece –
no nascimento.
Afonso Henriques, quatro onças de ouro para o Papa,
o Papa etc..
Houve depois a dupla avionética das notas de vinte paus,
o Gago e o Sacadura, o Santantónio também das de vinte
que, afinal, era de Turim,
a expedição de José Maria Eça de Queiroz à Palestina
(via Suez) – e
pouco mais.
Houve os Retornados, é verdade.
O Vasco Gonçalves a discursar em Almada,
o Prior do Crato e a selecção nacional de hóquei em patins,
o duque de Palmela e o encerramento das urgências,
o Buíça e o chinquilho,
D. Amélia e os pobrezinhos,
a Rainha Santa e os pobrezinhos,
o Tomás Taveira e a vaselina,
o António José da Silva e o imposto do isqueiro,
o Raul Solnado a falar pró Camões no alto da grua,
o Eládio Clímaco com boquinha de galinha,
o Alfredo Marceneiro a embirrar com os músicos,
o João Villaret a flanelar por Paris,
o Afonso III a lixar a vida ao II,
o Pinheiro Chagas da inelutável imbecilidade,
a sanha gástrica do Fialho de Almeida,
o Euro-2004 e as merendas nas hortas,
o Diário de Coimbra e os pobrezinhos.

Ficam feitos os patrióticos versinhos.

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Canzoada Assaltante