20/01/2009

Música que Veio de Noite

Casa, Souto, madrugada de 20 de Janeiro de 2009



Vim trabalhar para a música e ainda não voltei a casa.
Uma pessoa perde-se, o que não falta é bosque:
madeiras e sopros, lobos escuros como notas na neve pautada.

Agora não sei como hei-de fazer, embora saiba o que.
Às sete da manhã, vou ali ao café, há pacotes pequenos
de bolacha-baunilha, a malta reúne-se lá a discutir a última
jornada e as estrofes mais recentes do nosso mundo e o que
veio de noite enquanto as mulheres dormiam.

O problema é que depois
se vai tudo embora nos respectivos camiões,
tenho de voltar sozinho para o bosque, sopros nas madeiras, passaritos de apogiatura tilintam no cimo dos cedros,
a mulher da erva sente-se através,
não tenho fósforos, tenho pó de café, tenho cafeteira e tenho lenha,
mas esqueci-me de comprar fósforos no café para o café.

A meio do concerto, não dá para telefonar, os músicos irritam-se,
há que respeitar os músicos por dentro, eles tocam dentro,
se uma pessoa prestar atenção acaba por não pensar tanto em casa,
consegue suportar a manhã, o gelo que vitrifica a respiração,
o vago pânico de ter vindo trabalhar por conta das sereias.

À falta de fósforos, fuma-se vapor, o garruço descido aos olhos,
os pés de pedra na tumba das botas, as mãos estalando como galhos,
mas ainda assim dá para trautear aquela inclinação a verde,
o ponteiro do pinheiro que verga a verde na lividez do ar,
e não é preciso tirar um curso superior para se saber que perto
o ribeiro percute peixitos, breves, a compasso do que tenha
chovido.

Vim para a música ver se distingo de vez tristeza de graça.
A melancolia é apanágio das árvores, mas uma pessoa em bosque
acaba por lhes solfejar a íntima batida – todo o cuidado é mouco,
portanto.
Vejamos: isto é a tristeza, aquilo é a graça.
Nisto, o sino canta a meio caminho entre nós e um alegado Deus,
que, a existir, só existiu para Bach.
Vale-me que não tardam aí os madeireiros: clarinetistas quase todos.
Pode ser que um deles traga fósforos e o mapa de retorno a casa.


1 comentário:

Anónimo disse...

Se não existisse a palavra "lindo" não havia palavras para isto. Há.

Canzoada Assaltante