15/01/2009

Uma crónica e uma coisa que mete caras

© Rebecca Lepkoff
Untitled, New York, circa 1948



Momento grave com amor
Rosário Breve nº 86, in O Ribatejo (www.oribatejo.pt) de 16 de Janeiro de 2009



Às seis da tarde, já noite, costumo ir amar a Pátria para um café sossegado entre praças esvaziadas pelo frio e pela economia. Fico ali coisa de uma hora a ser o contrário do mar: não faço ondas nem devolvo náufragos.
Dá-se a combustão espontânea do tempo, faz-se hora de ir radiofonar, pago e desando.
No trajecto entre o café e o estúdio, assisto à exposição permanente e universal do meu pequeno e não admirável mundo: o cabelo no chão do salão de cabeleireiro, a luz da farmácia como um clarão glauco, o erro de acentuação na placa de um solicitador, a melancolia aritmética da mini-mulher da caixa-mercado, a demanda esfregona na padaria que encerra, os polícias tão parecidos com pombos e os pombos tão parecidos com polícias, as crianças prisioneiras nos bancos de trás dos carros, o fulgor frio das letras que escrevem HOTEL a néon no céu nocturno e o frio fulgor da estação ferroviária, essa intransigente metáfora da vida que passa a ferros.
Às nove, saio do ar e sou devolvido sem apelo à terra, onde se me impõem a escolta do frio e as algemas da economia. É um momento grave. Na churrasqueira da viela, operários sem mulher e bancários divorciados autopsiam meios frangos. Passa quase sempre uma ambulância, mas calada e escura como um carro funerário. Algum cão publica um mijo convulso num rodapé de palmeira. Ciganos fordtransitam espreit’enviesando os polícias columbinos. Não se vê praticamente mais ninguém desde 1143. Então, zipo-me da zona viril à maçã-de-Adão, fecho a cabeça num carapuço que vos garante que I Love NY e decido-me por uma libação no bufete da associação recreativa menos próxima do coração e mais parecida com a Pátria.



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Recebo na Cara Rostos
Pombal, noite de 14 de Janeiro de 2009

Recebo na cara rostos.
Vêm de frente em galeria rápida, como quando se anda de encontro, não ao encontro.
Recebo-os na cara em água, saem-me pela nuca.
Nunca me volto para trás por suspeitar que eles continuam rostos não voltados, nas minhas costas.

Esta noite, cedo ainda, subindo a avenida na graça do frio, conferi as árvores envernizadas de chuva, que durou a tarde mas não sobreviveu ao crepúsculo.
O ar era esmalte endurecido, custando-me quase tanto o respirar quanto o viver.
Conferi também a nitidez das trevas, uma espécie de claridade, como direi?, desumana, como se minha e nossa fosse a culpa dos reclamos eléctricos.

Não fui à estação ver quem espera comboios, nem quem vem ver quem espera.
Também não entrei na Senhora da Matrix a pedir por quem precisa.
Praticamente não fiz nada hoje.
Recebi rostos na cara – mas isso não é fazer, é ser, é só deixar-me ser, só.

Os velhos andam mais macambúzios que de costume.
O frio enxotou-os do parque.
Agora, como desde que nasceram, não sabem que hão-de fazer à vida.
(Suspeito de que também eles recebem na cara.)

Mais tarde, fez-se agora.
Uma orquestra desarruma partituras no coreto da cabeça.
Lavaram o mercado do peixe à mangueirada, cheira na rua a rio baixo, a peixes invisíveis.
Tenho um saco de pele com ossos dentro, dentro onde os músicos desarrumam peixes.

Não tenho algo que favorecera o não pensar o pensar.
O pensar pensa-se (mal) como o sentir se sente (mal).
Não tenho a máquina de pensar bem para me sentir melhor.
Falta-me um bocado de aeronáutica e outro tanto de fitocultura.
Não me falta tempo – curiosamente, nunca me faltou tempo, sequer para a frente (que me lembre, pelo menos).
Recebo na cara rostos.

Vi tantas coisas.
Vi-as mal porque as pensei.
Vi o menino juntando água na fonte.
Vi um homem atrasado para o trabalho, era de cabeça cor-de-ferrugem-de-cenoura.
Vi um cão a ser feliz sem pensar nisso.
Vi um perfil de comboio carregado de perfis de gente passageira (como toda a gente todo o tempo passa).
Vi a anáfora recorrente da tristeza.
Coração, vi o anacoluto do coração.
Vi o merceeiro descansar um pouco, sentado em caixas de ananases.
Vi uma mulher tomar vinho como uma sacerdotisa andrajosa.
Vi a capa do livro de Edmondo de Amicis em que há 40 anos aprendi o que significa andrajoso.
Vi rostos vindo, viandas de luz andarilha vindo,
indo-me
embora pela nuca.

3 comentários:

LM,paris disse...

Lindo daniel!
Estou a ver-te no café, bem gostava de beber un verre de bordeaux avec toi, avec des olives...
" ao contràrio do mar...", adoro!
Uma pàgina tua e dou a volta ao mundo que nso escrves. Beijos,
sim a nossa albertine, est une chatte de style!!
Parisienne va!
até jà,
LM

Lilian Gouveia disse...

gosto do que escreve e de como escreve. tenho lido-o em silêncio, há algum tempo. misturada às imagens de pentagramas e pautas, estava a imagem de um gato que observava uma tarde chuvosa. não há como resistir a um gato, então entrei pela imagem e achei seu blog. algo como um portal mágico para um mundo de palavras que têm importância.

obrigada por escrever

saudações

Daniel Abrunheiro disse...

A vossa visita honra este sítio. Obrigado pela atenção e pelo carinho.

Canzoada Assaltante