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Sábado,
18 de Dezembro de 2021
Pessoas progridem no tempo-espaço de cariz local, um pai brinca com o filho no patamar do prédio, um cavalheiro encanecido lê o Diário de Coimbra muito devagar, um rapaz cego tirita de alumínio passos a bengala medidos, subimos todos ao grau chamado Meio-Dia.
Sorri esta manhã, muito cedo ainda, à evocação involuntária de uma palavra dita por alguém que já não respira. Tem-me acontecido mais vezes: a mesma palavra, a mesma pessoa, a mesma autoridade da ausência física. Já não estou sorrindo.
Ontem, dia do 28.º aniversário da minha Leonor, deitei-me cedo & não adormeci tarde. Despertei sem auxílio de máquinas. Almoço hoje com ela. É hora-boa em boa-hora, portanto. Vesti a camisola verde-marinha que comprei em Pombal no Ano 2002 d.C. Era então Outubro, se não erro.
Camisola de verde-marinho, calça azul-ganga, sapatos pretos, casaco castanho-escuro: vou taful ao encontro da Menina. Levo-lhe um disco de Astor Piazzolla y su Quinteto. Tem 28 anos, a minha Nina, parece impossível, onde vai o Dezembro/1993?, parece inverosímil.
Pretendo tão-só ser de um ócio transitivo, que resulte em complemento. De meus pretéritos falhanços, a lição aponta para melhor pontaria. Nada (enfim, não) de muito grave. Ou, como diria o velho Steinbroken, nada de “excessivement grave”.
Outra coisa de que me tenho dado conta: a minha prosa mais recente tem sido (tangencialmente ao menos) de feição epistolar - só não nomeia vocativo-destinatário. Enfim: falar-sozinho é de-doidinho; escrever a sós é esquizofrenia-de-voz.
Ainda se me não adentrou cabal ou violentamente a evidência da incomunicação. Persisto crendo na possibilidade de alguma palavra em trânsito-julgado. Não penso que seja quimérico, histérico, utópico ou estrambótico crê-lo. (Mas se o for, paciência.)
Um adulto já avô conversa com aquele menino que há pouco, no patamar, brincava com seu, dele/menino, pai. A criança descansa assentadamente na bola de couro: cr7 ainda sem direito a maiúsculas. É a infância a pertencer-lhe, mal ele sabe o fósforo que risca.
Um amigo de há tempos tem-me, penso eu, em conta de “pouco actuante”. Lá terá ele sua razão de pensá-lo. De facto & deveras, o meu palavreado não resolve candentes pobrezas, pensões alimentares, destinos cósmicos nem boleias para festivais de música. E pur si muove, como se diz que disse o velho G.G.
Nenhuma fronteira reconheço ao pensamento.
A linha litoral desconhece veraneantes.
À Natura, tudo indifere como era dantes.
Mano tinta & lápis para meu alento, ao vento.
Subo descidas como quem nasceu - é de lei.
Subiram prédios novos onde era o monte.
Resisto ao estreitar do vão horizonte.
Se resulta?, não sei – se adianta, não sei.
Pertenço meridional a um desejo de norte.
(Eu disse de norte, não pulsão-de-morte.)
Uma senhora de azul vem ora cafeinar-se
a mesa remota, é prudente afastar-se
nestes covídicos-tempos (tão chinopanvirais,
que espirrar é pecado daqueles mais mortais).
De mais penso sem querer no que ainda creio:
às vezes ser lúcido é horrendo & feio.
Senhora bem cavalheira
Que o trigo imita em luz
Pelo Natal de Jesus
É bela, queira ou não queira
É bela, queira ou não
A senhora cavalheira
Bela o queira ou não
A senhora jesuseira.
E quem de prosa mais ou menos legível passa a versificação sem encomenda, mote, destino ou remédio? I do. Havia aqui, houve aqui, perto de onde (de momento) escrevo, um restaurante-chinês. Foi dos primeiros a haver nesta equívoca globalização. (E globalização, hélas!, significa: falência da dupla GB/EUA, anacronismo da Rússia & império da desumanista China, senhores.) Mas que em verso se tente ainda:
Ao alto da Sereia de Coimbra
A luz parece justa & humana
O arvoredo dá uma sombra linda
Já era então assim há uma semana.
Em rancho de eira-espiga-vermelha
Moçoilas aguardam lei de Natura
E qualquer nascimento que aí venha
Virá da forma mais bruta & mais pura.
O Bruno tem o carro empancado
& a Sónia não acaba a secundária
O Carlos foi há pouco operado
& o resto é bossa-nova-dromedária.
Houve nesta Cidade uma mercearia a que minha Mãe acorria quando, poder, podia. Era na Visconde da Luz, a de Coruche antigamente. Recordo essas dela saídas-a-abastecimento. Levava a Senhora dinheiro contado. Ela lá sabia como abastecer o quartel em que se lhe volvera a prole. O Velho dizia: Ela torna elástico o dinheiro. Certa ocasião, no Verão/1974, perdão, no Outono-Lectivo-1974-1975, lá fomos. À de/do Coruche, ainda hoje do Visconde da Luz. Ao balcão-bar, comi um cachorro-quente com uma laranjada. Ela tomou café com pastel-de-nata. Lembro-me disto agora porque sim: estou prestes a almoçar com a minha Filha, faço eu de fornecedor de cachorro-quente, nata, alguma bebida fresca ou quente.
(Ao contrário do que possais julgar, trabalho em profundidade et prosa et verso: não, não facilito; periclitar, periclito; mas não facilito.)
4 comentários:
"império da desumanista China" onde está a desumanidade? Por terem os olhos em bico? Por não estarem em guerra com todo o mundo?
Saúde meu caro Daniel!
Vejo, Amigo Cid, que discordamos. Ainda bem que sim. É o que faz vivermos aqui. Na China, todavia, um de nós dois já estaria em parte incerta. E dou uma pista: não seria o meu Amigo.
E eu que gostava tanto de estar numa parte incerta. A certeza rotineira enfada.
QUE VIVAM AS DIVERGÊNCIAS!
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