24/12/2021

PARNADA IDEMUNO - 856

 


856

Sábado,
18 de Dezembro de 2021

    Pessoas progridem no tempo-espaço de cariz local, um pai brinca com o filho no patamar do prédio, um cavalheiro encanecido lê o Diário de Coimbra muito devagar, um rapaz cego tirita de alumínio passos a bengala medidos, subimos todos ao grau chamado Meio-Dia.
    Sorri esta manhã, muito cedo ainda, à evocação involuntária de uma palavra dita por alguém que já não respira. Tem-me acontecido mais vezes: a mesma palavra, a mesma pessoa, a mesma autoridade da ausência física. Já não estou sorrindo.
    Ontem, dia do 28.º aniversário da minha Leonor, deitei-me cedo & não adormeci tarde. Despertei sem auxílio de máquinas. Almoço hoje com ela. É hora-boa em boa-hora, portanto. Vesti a camisola verde-marinha que comprei em Pombal no Ano 2002 d.C. Era então Outubro, se não erro.
    Camisola de verde-marinho, calça azul-ganga, sapatos pretos, casaco castanho-escuro: vou taful ao encontro da Menina. Levo-lhe um disco de Astor Piazzolla y su Quinteto. Tem 28 anos, a minha Nina, parece impossível, onde vai o Dezembro/1993?, parece inverosímil.
    Pretendo tão-só ser de um ócio transitivo, que resulte em complemento. De meus pretéritos falhanços, a lição aponta para melhor pontaria. Nada (enfim, não) de muito grave. Ou, como diria o velho Steinbroken, nada de “excessivement grave”.
    Outra coisa de que me tenho dado conta: a minha prosa mais recente tem sido (tangencialmente ao menos) de feição epistolar - só não nomeia vocativo-destinatário. Enfim: falar-sozinho é de-doidinho; escrever a sós é esquizofrenia-de-voz.
    Ainda se me não adentrou cabal ou violentamente a evidência da incomunicação. Persisto crendo na possibilidade de alguma palavra em trânsito-julgado. Não penso que seja quimérico, histérico, utópico ou estrambótico crê-lo. (Mas se o for, paciência.)
    Um adulto já avô conversa com aquele menino que há pouco, no patamar, brincava com seu, dele/menino, pai. A criança descansa assentadamente na bola de couro: cr7 ainda sem direito a maiúsculas. É a infância a pertencer-lhe, mal ele sabe o fósforo que risca.
    Um amigo de há tempos tem-me, penso eu, em conta de “pouco actuante”. Lá terá ele sua razão de pensá-lo. De facto & deveras, o meu palavreado não resolve candentes pobrezas, pensões alimentares, destinos cósmicos nem boleias para festivais de música. E pur si muove, como se diz que disse o velho G.G.

    Nenhuma fronteira reconheço ao pensamento.
    A linha litoral desconhece veraneantes.
    À Natura, tudo indifere como era dantes.
    Mano tinta & lápis para meu alento, ao vento.

    Subo descidas como quem nasceu - é de lei.
    Subiram prédios novos onde era o monte.
    Resisto ao estreitar do vão horizonte.
    Se resulta?, não sei – se adianta, não sei.

    Pertenço meridional a um desejo de norte.
    (Eu disse de norte, não pulsão-de-morte.)
    Uma senhora de azul vem ora cafeinar-se
    a mesa remota, é prudente afastar-se

    nestes covídicos-tempos (tão chinopanvirais,
    que espirrar é pecado daqueles mais mortais).
    De mais penso sem querer no que ainda creio:
    às vezes ser lúcido é horrendo & feio.

    Senhora bem cavalheira
    Que o trigo imita em luz
    Pelo Natal de Jesus
    É bela, queira ou não queira

    É bela, queira ou não
    A senhora cavalheira
    Bela o queira ou não
    A senhora jesuseira.

    E quem de prosa mais ou menos legível passa a versificação sem encomenda, mote, destino ou remédio? I do. Havia aqui, houve aqui, perto de onde (de momento) escrevo, um restaurante-chinês. Foi dos primeiros a haver nesta equívoca globalização. (E globalização, hélas!, significa: falência da dupla GB/EUA, anacronismo da Rússia & império da desumanista China, senhores.) Mas que em verso se tente ainda:

    Ao alto da Sereia de Coimbra
    A luz parece justa & humana
    O arvoredo dá uma sombra linda
    Já era então assim há uma semana.
    Em rancho de eira-espiga-vermelha
    Moçoilas aguardam lei de Natura
    E qualquer nascimento que aí venha
    Virá da forma mais bruta & mais pura.
    O Bruno tem o carro empancado
    & a Sónia não acaba a secundária
    O Carlos foi há pouco operado
    & o resto é bossa-nova-dromedária.

    Houve nesta Cidade uma mercearia a que minha Mãe acorria quando, poder, podia. Era na Visconde da Luz, a de Coruche antigamente. Recordo essas dela saídas-a-abastecimento. Levava a Senhora dinheiro contado. Ela lá sabia como abastecer o quartel em que se lhe volvera a prole. O Velho dizia: Ela torna elástico o dinheiro. Certa ocasião, no Verão/1974, perdão, no Outono-Lectivo-1974-1975, lá fomos. À de/do Coruche, ainda hoje do Visconde da Luz. Ao balcão-bar, comi um cachorro-quente com uma laranjada. Ela tomou café com pastel-de-nata. Lembro-me disto agora porque sim: estou prestes a almoçar com a minha Filha, faço eu de fornecedor de cachorro-quente, nata, alguma bebida fresca ou quente.
    (Ao contrário do que possais julgar, trabalho em profundidade et prosa et verso: não, não facilito; periclitar, periclito; mas não facilito.)

4 comentários:

cid simoes disse...

"império da desumanista China" onde está a desumanidade? Por terem os olhos em bico? Por não estarem em guerra com todo o mundo?
Saúde meu caro Daniel!

Daniel Abrunheiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Daniel Abrunheiro disse...

Vejo, Amigo Cid, que discordamos. Ainda bem que sim. É o que faz vivermos aqui. Na China, todavia, um de nós dois já estaria em parte incerta. E dou uma pista: não seria o meu Amigo.

cid simoes disse...

E eu que gostava tanto de estar numa parte incerta. A certeza rotineira enfada.
QUE VIVAM AS DIVERGÊNCIAS!

Canzoada Assaltante