20/02/2011

Ideário de Coimbra - 109 (fragmentos vários)


109. BEM – OU ENTÃO CIVIS COVIS

Coimbra, terça-feira, 2 de Novembro de 2010

Beneficio por vezes de uma luz como a desta manhã que me chega e abrange todo, toda ela matizada de cristais perfumados e fluviais. Imerso nela, nada me custa perceber a importância acessória do viver. Do bornal, saco pão devindo antigo e dou-o aos pássaros, que são como películas contrapontuais do cromo luminoso. As árvores incandescem por capricho, à maneira de auriflamas que consola mirar. Atiçadas pelo clarão solar, derramam pelo chão revoadas de ideogramas muito caligráficos. Nem os automóveis parecem mortíferos. Nem a respiração é o perigo do costume. A consciência, amodorrada na Beleza, pensa coisas de gato. E os cães encouram os seus casacos vitalícios enquanto procuram aromas que só eles podem detectar. Ao alto muito azul, um jacto fuma milhas aéreas. Penso numa mulher. Ela é fresca como a corrente manhã. Acontece-lhe fulgurar a verde sobre campo cor-de-ouro-velho. A esta hora, noutra cidade, que estará ela fazendo? Com quem falará e que lhe diz? Digo: pensar numa mulher é como pensar numa oliveira. O azeite mana de ambas as lembraduras. E todo o azeite é toda a luz.

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Colonoscopia da alma, isto de escrever linhas mais linhas. Cidadão, vogo pela dieta de autocarros, lojas pequenas onde homenzinhos exercem existências do tamanho de avelãs, nomes de praças fulminadas pelo revérbero dos jacarandás.

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Ele é aquele – e tem aquele filho tão doente, tão internado e tão tantos muitos euros por mês. Uma sexta-feira, noite. Vem tomar uma bebida ao bar onde médicos e suas mulherezinhas, onde advogadas e suas lésbicazinhas. Vendedores por grosso & atacado. Músic’anos’80 etc. Ele é Amílcar. O filho doente é Edmundo. Toma uma roda de flanela chamada whiskey. Entremeia com sorvos de cerveja fria. Gary Sinise arde a cores no plasma. Têvê sem som, está-se, graças a Deus, num país que legenda os filmes. Phil Collins nos cantos, Genesis pós-Gabriel, aquela merda tipo American Psycho, Sussudeo ou merda assim. Cozinham feijões (são quatro gajos num apartamento, o bar já lá vai, só um trouxe gaja consigo, mas a fulana já ressona no divã dos hóspedes, felizmente longe, há-de deixar tudo vomitado; isto passa-se na Avenida Calouste Gulbenkian) com tiras de toucinho frito. Amílcar tem o quisto-Edmundo alapado ao mesencéfalo, mas é de Syd Barrett que fala. Morreu, o Cid Barreto. Unhas compridas e ver a Emília tocar etc. Uma revista de jornal semanário com entrevista: Artur Jorge, o treinador de futebol que gosta de livros-cinema-pintura. Nas estantes do dono da cozinha, Munch, Pavese, Pantagruel, Sterne, Gogol, Sciascia, Undset, Hamsun, Gutiérrez, Arenas, Arrabal, Aquilino, Fo, Pascoaes, Endo e, estranheza!, Enid Blyton. Fritam fatias de pão, esmagam coentros com alho, amanteigam essas benesses propiciadoras de um tinto transmontano. Riem-se com a tristeza exegeta dos que, enfim. A gaja já não dorme, passou-lhe a erva, cheirou-lhe a especiarias, prova o feijão e diz que está tudo (e nisto tem ela toda a razão) – bem.

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Aluno algumas vezes, discípulo nunca, gosto de aprender, verbo que rima com ser e render sem ser por acaso. Este senhor Miguel, por exemplo. Precoce encanecido, empregado-de-mesa, jeitoso de ancas verbais no à-vontade com que concatena bicas, tostas-mistas, frases benficassporting, graçolas trocadilhadas, boletins do euromilhões e sombras de quarto-de-renda por pagar. Nascido em Vila Real de Trás-os-Montes no ano de (apenas) 1975. Em Coimbra a trabalhar desde os dezasseis por ter achado insuportável o destino de seminarista em Viseu. Restaurante Mindelo. Confeitaria Graça & Filho. Pastelaria Ramos. Farmácia Matos Pereira, Sucs. Gosto de render. Ele fala para ser. Gosto de aprender. Não gosto tanto é de ser.

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Agora é no Bairro Norton de Matos, antigo Marechal Carmona. Alui-se a luz, penedia matinal que coruscante c(h)egou a ser, em matina. Pátina agora breve e esmae-esvae-desvanecida. Autocarros plenos de pobre gente com cinco euros e o passe SMTUC na carteira. Quase tudo gente militante & peregrina da bienal/juliana Procissão da Rainha Santa (anos pares). O Alexandre, já velho de 58, com joanetes desde os 22. O Ismael, que chegou a ser júnior do basquetebol do Sport Conimbricense em 70 & qualquer coisa, aliás pouca. O Graciano, cuja mulher a gente sabe. Cadáveres respiratórios, múmias aeróbicas, silhuetas de fotografias de dêvêdês de celebridade por causa de tão pouca coisa como haver nascido.

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Porra, que agora (HORÁRIO-DE-INVERNO-18H02M) já é de noite. Qu’é feito da minha luz-matina-transluz-de-menina? Carago. As pessoas nos/nas cafés-repartições-ruas-carreiras-vocábulos-genealogias-estremeções-as-pessoas-nas-pessoas-sem-pessoas-as-pessoas-sem-translineação. Diacríticas, as pessoas-gente. Grei, coitadas. A pret&branco nas fotografias da Repúbli-1910-ca. As pessoas, coitadas, TVI-Reader’s-Digest, coitadas. Bem. Bem, de qualquer modo, são já as 18h30m. O Rio etc. Um saco com quilos de livros repesados por outras pessoas: Roth, Cossery, Milton, Azevedo. Uma terça-feira de Novembro em Coimbra sem sopa de Mãe em casa de Mãe – e agora? Agora, Charlie Chaplin & Os Malucos do Circo. Ou o homem civilizado que come o seu pão-de-passas enquanto folheia (não, Marília, não digas “desfolha”, diz “folheia”) o diário de, lembra-me!?, qualquer-coisa-coimbra. Eu aqui vivo, minhas filhas. Eu aqui, vivo, minhas filhas. Tão, como as outras, filhas. Maravilhosas, brancas de seda esticada a apuro crisálido. Róseas, nacarinas. I know. Nada a ver, tudo a haver. Tenho andado fora, girls. Voltarei devagar e discreto, não ladrando os cães, pelo curral da lenha.

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Há hotéis que descem de estrelas. Tem a ver, parece, com a classificação turística. Mas a bonomia ante filhas permanece eucarística. (Enviado ao Rui Antunes Correia às 18h31m).

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Que terei eu a dizer do regresso dos operários à tardinha aos civis covis onde as operárias os esperam sem desesperar sobre atoalhados em fórmicas estendidos, coitados?

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Que me terei? Casal da Rainha Santa,
diz-me tu, diz-me tu: quanto passa,
não graça sendo nem desgraça, olha, olha,
diz-me tu, tornando tanta

a qualidade, aliás pintada, do pintor
meu Pai a sua casa, Casal de Santa Isabel,
ela sendo só a mulher, ele, só, Daniel.

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Guarnece-se toda ela de asas pretas.
A roupa que escolheu é parecida
com a noite de semáforos e lambretas,
com a noite e com o dia, c’a própria vida.

O fim do rouco futuro bate à esquina,
farmácias, ditirambos, tudo acorre.
Eu peço o mil perdão, minha menina.
Quem vive aqui, ai logo ali morre.

Pela saúde e vita-vida-lícia das minhas
filhas etc.

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JOAQUIM, OLHA AQUI(M):

O Tempo não se revestiu de novas roupas. A seriedade é hoje coisa numerária. Tu, olha, não dês notícias, espalha-te antes ante malícias que dêem cor à luz e à noite vária. Se a furtada Catarina cá vier, tu publicita a cristã generosidade. Como isto é TVI, tudo é (c)idade: e as pessoas reconhecem a publicidade.
Vender é uma coisa, vender-se é outra. Alma e elástico de cuecas parecem-se muito, pois não parecem? Eu quero é Azambuja, eu quero é Cheias do Tejo, eu quero é Salgueiro Maia nos Açores por não ter querido ser Secretário de Estado! Quando os proxenetas deixarem de vender aos alfarrabistas os crimes da aldeia velha que certo Santareno tornou tão ’scalabitano quão humano; quanto, esperto mais do que piegas, certo Mário Viegas (ou Ruy Belo, o mesmo a esmo) bateu, no Liceu de Santarém, feriados de aula contra a campainha e contra o País também (sendo o dizê-lo, aliás, rima de Ruy-Moura-Belo), então, o Tempo não se exila para os Açores.
Antes será Dinamene e Bárbara e Camões e as Cheias do Tejo – e demais, digamo-los, Amores. E por hoje é tudo, Quim & Senhoras & Senhores.

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Ele hoje não vem cá, Senhora.
Não conte hoje com ele, Marquesa.
Pus as pratas e os damascos na mesa,
mas, Marquesa, minha Senhora,
ele hoje não vem cá, Senhora
Marquesa. Pode, concerteza,
ele ter falhado,
a própria vida e o mesmo fado
que assistem ao pequenito,
digamos que por aflição ou porque aflito,
nem sempre poder ser ou vir
ou existir, mas, Madame, Senhora,
não conte com ele hoje. Mas eu diria,
se hoje não for, seja outro dia.

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Canzoada Assaltante