15/09/2005

O Onicófago - II - Corpo, Casa da Noite

(Segundo texto d'O Onicófago. Mesma explicação, se a há. Com esta ressalva: entre o I e este texto, mudei de casa. De vida, não.)



Corpo, Casa da Noite

Convém, é claro, aceitar que o corpo que levamos (eu-o-meu, tu-o-teu) disponha de interiores como uma casa, mesmo que fechada. Chamar a essas salas nomes como alma, mente, sonho -pouco importa. Mas, cá dentro, recusar isso, negar com vidência a evidência alheia. Ou seja: postular que o corpo é maciço, que é maciça a vida dele, que entre ele e as estrelas não há distância possível. É preciso esperar a noite e a pouca poluição para que as estrelas se tornem visíveis, eu sei. Mas sei mais e muito melhor que isso: sei que me basta fechar os olhos para vê-las: lesões luminosas no verso das pálpebras corridas como persianas de carne.
Por cautela, vesti uma camisola sobre a camisa. Mas a humidade da tarde de Setembro atraiu a sede do sol, e o sol abriu-se como uma promessa. Depois do almoço, a semana varreu da rua as pessoas. Só os ociosos ficaram, fiéis para sempre às esplanadas mobiladas de plástico branco e vinho tinto com gasosa. Já sofro mal este mundo, que foi outrora o meu e que agora, pela insensatez da literatura, entrego ao silêncio estridente da tinta de caneta. Verde. A tinta.
Linhas e linhas verdes num caderno de capas amarelas. Também o ócio é amarelo. Na esplanada de plástico, sei que o nada existe. Que o nada não é a ausência das coisas, mas a ausência de quem as conheça. Nesse sentido, os vivos vivem no nada dos mortos. O que existe, é o que sobra do nada: a duração (não a adoração) da vida, os ardis da poesia, a dimensão paralela que é a a linguagem. Enquanto não telefono ao Jorge a saber do carro velho e branco que vou ou não vou comprar-lhe, a tarde presta-se-me à usura de uma suave amargura - a minha, a do meu corpo caçador de meninas babadas que se esquecem até de estar vivas na floresta. Um cavalheiro de camisa branca sem gravata tenta sacar um relógio de pulso de dentro de uma espécie de caixão de vidro vertical. Injecta uma moeda de cem, um manípulo acciona um braço eléctrico de três garras que desce e persegue o relógio. O relógio foge como um ratito. Não é desta que o desengravatado tem o seu prémio. Vocifera baixinho, olha de lado, descobre-me dobrado sobre um caderno de suspeitas capas amarelas, vê que estou a olhar para ele e rosna-me:
- Que está você a olhar para mim?
- Estou a escrevê-lo. Agora, você vai desaparecer na penumbra do café - digo-lhe.
O homem desaparece na penumbra do café.
Já me recuso a anunciar toda e qualquer totalidade. Nenhuma vida é total, como nenhuma morte o é. Precisamos dos outros para, ao menos, entender a totalidade. E os outros não estão aqui para nós, para mim. Andarão ou não por aí. Isto torna-me fragmentário. Hoje, ao menos. Depois, há o Tempo. A hora da tarde, o peso financeiro da semana, a estepe do mês, o horror de cada ano contado para trás e para o fundo.

O homem sem gravata desaparece na penumbra do café, eu saio para a canja da noite, que preparo num rés-do-chão exposto à filosofia dos operários sem filosofia. A casa é húmida. Vivo sobre as brasas do lugar: cadeiras forradas de fórmica, cinzeiros de vidro martelado, uma televisão pequena, um estante com livros e cassetes, uma panela para a canja. Um telefone, de que me chegam às vezes as vozes de mulheres sem matrimónio e sem alternativa. Não me custa pensar que o meu nome seja, mais que uma risca sideral, a última linha das agendas telefónicas dessas mulheres.
Mas falava da totalidade. Já a não reconheço senão como abstracção, imagem mental criada como impotência, pela tua e minha incapacidade de aceitar a fragmentação, a dispersão, o farrapo de cada vida. Granadas rebentadas, espalhamo-nos aos ventos. Inútil incinerarem-nos: já o estamos. Essa ideia de felicidade para sempre: uma casa para morar, um carro para guiar, uma carreira para se contar nos beberetes: pois sim, pois não, pois a ver vamos.O Jorge atende o telemóvel. Vai a caminho de Mangualde, impossível vermos hoje o carro branco, para a semana será. Ou não.
A canja ferve, leio a biografia de alguém. Quem me deu o direito de entrar na vida de um morto? Os homens são assim: escondem a vida, como Kafka, mas não encontram maneira de fugir à lâmpada indiscreta dos necrólogos. A lâmpada da cozinha emana um amarelo doentio, uma luz de cansa-olhos. A chama do fogão parece uma rosa azul. A cafeteira grande de aquecer água para as abluções repousa sobre o tachinho de arroz branco com línguas de cebola. Quando o animal doméstico se fecha em casa, o corpo rejubila de tão maciço. A minha vida e a minha morte escrevem obscenidades religiosas nos azulejos das paredes.
O telefone toca na casa do homem verde de capa amarela. É uma mulher. É a voz dessa mulher. Imperatriz das suas pequenas coisas, deusa do seu automóvel escuro e veloz, senhora da sua pele tensa como de um tambor educado. Mulher de cheiro vegetal, telefonadora do homem isolado, verde, amarelo. A canja está pronta, ele convida, ela recusa, vão encontrar-se à hora a que o rio atrai os primeiros frios da estação, essa hora a que as pastelarias morrem de cansaço. Hão-de falar do trabalho que dá procurar trabalho. Ela está desempregada, ele ganha pouco, bocejam antes do amor, são felizes sem totalidade e sem alternativa. Mas mesmo isto não interessa. É coisa comum. Milhões de pessoas, milhares de cidades, tantos telefonemas, tantas noites: não interessa.

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Canzoada Assaltante