18/02/2022

REGISTOS CIVIS - 72

 

© Mário Botas




Ou se calhar nem por isso – 72

                      


 

Os dias virão, Lídia Laura Bárbara Dinamene,
em que mais não seremos: ou seremos a menos.
Tal nada nos importe, no mesmo nada consistiremos.
Unidos nos veremos a milénios de areia sem uma gota d’água.

Nada temamos senão o alheio sofrimento inocente.
Recordo-te, Dinamene Bárbara Laura Lídia,
aquele casal à entrada da velhíssima igreja:
casavam-se naquele domingo se calhar por amor.

Aqui ainda te estou, suave Lídia, doce Laura,
sou por ti ainda, macia Bárbara, rósea Dinamene.
Inventar-te tive de, pois que a mais al não (re)conheço.
Em boa-hora o fiz, agora que nisso penso & considero.

Em logros vivi já, não mais, algo sempre se aprende.
Por mais remota semelhe, a ideia de morte não é inverosímil.
Diariamente o jornal a reitera em turvas fotos tipo-passe.
Ao mesmo tempo, crianças jubilam de vivos bibes os jardins-escolas.

Aqui, dizem, houveram amores Inez & Pedro trágicos,
por aqui, contam, se assenhoreou a Rainha dita Santa.
Ainda o lôgo é formoso, capital de áurea luz,
frescas águas, choupos viçosos, nascimento de meus Pais.

Antes isso do que andar de unhas com esterco,
de carão equívoco, a melindrados penates,
antes isso, ó maviosa Lídia Laura,
isso antes, ó cordial Bárbara Dinamene.

Resta (al)quebrada em mim alguma coisa inominável,
ou por enquanto não nomeada ainda,
ou entretanto inefável, indizível, opressa,
íntima, dérmica, glandular, o raio-que-a-parta.

Talvez não de todo, Lídia, por aí vigores benfazejamente.
Não sei. Sei muito que conheço pouco. Não sei.
Nada me falhou que me houvera sido prometido.
E em palavras apenas te dou música por ambiente.

Há década & meia (a passar de), convivi com estropiados.
Era em instituição clínica de muita antiguidade.
Ora, aqui há dias, revi gente daquela muito afim.
Doeu-me mais o ser esta tão nova, tão sem-retorno.

Talvez eu te nomeie, Bárbara, compositamente.
Talvez, Dinamene, sejas mescla de outra gente
que eu horizontalizei a preceito quando moço.
Se sim, aqui subliminarmente te duvido, Laura Lídia.

Certa vez de incerto outrora, vi uma estátua maravilhosa:
movia-se, respirava, era como tu mas carnal (& carnívora).
Foi na fila para a Secretaria-Geral da Universidade de Coimbra.
Época de matrículas não-informatizáveis, século & milénio passados.

Vinha de verde-claro, boca vermelha como um grito ou um murro,
pele perfeita, solar como os domingos da infância,
sapatos azul-noite, rítmica a ponto de pendular.
Cacei-me mirando-a como se eu Pedro, Inez ela.

Não era Inez nada. Petrificado eu sim, ante tal desconchavo.
Eu teria talvez 22 anos, ela mui talvez mil.
Esperava-a na rua um fedelho imberbe, capotável, insalubre.
Ele porém a tinha em mãos, eu não. Ainda a não tenho.

Uma coisa, Lídia, te garantir posso, a que procedo:
ninguém escapa. Não é crível o argumento avesso.
Tenho tocado mortos que por aí vivos se mostram.
Nem todos demonstram lucidez quanto a tal.

Também por tal procedo a odes no conjuntivo.
Na praia foi que li aquele drama de senhoras do Pessoa.
Fiquei assaz arrebatado, julguei compreender, que tonto sou.
Vejo-o por vezes em radiografia, sonhando ou coiso.

Nesse tempo, a uma-da-tarde não era esta-d’agora-hoje.
Fumava eu então cigarro nenhum, nem café bebia nos cafés.
Tocando-me toda a possibilidade, nada me parecia impossível.
Convocaram-me então para a tropa, adquiri virtudes novas.

Ainda te não inventara, bárbara Bárbara, nem em ti pensara.
Ia a bailes, tocava no conjunto, via do palco quem bailava.
Há bem 27 anos que o não faço, se contas não erro.
Nostalgia? Não gosto disso. Gasto mas não gosto.

Se, fora de conjuntivas odes, me visses por aí de autocarro,
minha Lídia puríssima, por aí de autocarro coimbrando-me,
a enxuto pré-senil verias, que as não digo por meio-troco:
ex-menino, ex-rapaz, ex-quase-tudo a começar por ex-nascido.

Artistas-arquitectos da Europa se achegaram a este sul.
Lavraram pedra que hoje remanesce orgulhosa.
A Igreja os remunerava, assim se usava então.
Tantos séculos-máquinas volvidos, nem imitá-los sabem.

Tenho, Laura, lido conscienciosamente o meu Duby.
Tu sabes: catedrais, o Ano Mil, todo aquele susto pétreo.
Vogo nessa leitura como um justo: nem pareço envelhecer.
Se deveras envelheço, é, como em O Pai Tirano, “contrariado”.

Há muito me pus renegando, Dinamene,
quem de porvir-pretérito por igual me renegara.
Acamei demasiadas camas & damas sem lençóis profilácticos,
não cuidei de companhia: luz-da-manhã-que-me-despertasse.

Mal fiz, mal me acho. Ou não tão bem quando previsto.
Saio à rua anónima (mas de que sei o nome).
Procuro algumas Lídia, Laura, Bárbara, Dinamene:
nem uma entre nada-zero, cortaram os telefonemas.

(Aqui sozinho-entre-rapazes, confio pouco em poemas:
mormente nos meus como nos maus, esses que a mármore não chegam.)
(Confio na minha morte, aí onde só nome-duas-datas,
aí onde, já nada sendo, serei ainda.)

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Canzoada Assaltante