01/02/2022

REGISTOS CIVIS - 42 (completo)

© DA.


Resgate – 42

 



I



Tenho, via versos, tentado o resgate de algum sentido,
algum sentido para ao menos algo de tudo isto,
tudo isto sendo o que os sentidos captam
+ o que aos sentidos é de todo vedado captar.

Os cadernos de tal resultantes ganham pó no chão.
De tal, mal ao mundo não vem – nem bem.
Julgo que faria de afim modo se na Finlândia.
E na Finlândia como na Noruega ou em Setúbal.

De cada vez que recorro ao hospital, venho esclarecido.
Esclarece-se-me a falibilidade do corpo, não menos.
Nem é bombástica nova de última-hora, longe disso.
Vejo os meus humanos homólogos em diversas aflições.

Este é um tempo de viral-pandemónica-pandemia.
Tirando as eleições de 30/I, de mais se não fala.
Resignado carnaval de mascarados é cada rua.
E cada rua se genuflecte ante o ídolo-covídico-19.

Janeiro (sexta-feira-28) dá de si as últimas.
Tenho revisitado caixotes buscando livros velhos.
Alguns, na minha mocidade adquiridos, parecem-me felizes.
Ainda bem que escolhi, via eles, esta perdição.

Inclino-me para uma terra que me não rejeitará.
Orgânico, sou matéria que há tão-só que dispersar-se.
Se nos meus Amados Mortos penso, assim creio querer pensar:
átomos dispersos de que o Céu não fará re-união.

Quando não se me deparam pessoas (recorrente estado),
faço por aproveitar o instante paginado (quase sempre).
Este me permite ostracizar-me de maus pretéritos,
coisas (em) que miseramente falhei & hoje sem remédio.

Afiro pelo pasquim local a mediocridade reinante.
Leio medíocres esdruxulamente tónicos de si mesmos.
Antes quero borrar um pé todo do que tal retórica.
Vou a lado nenhum, todavia, não m’inscrevendo em tal lista.

Dói-me (muito) mais, todavia, o ostracismo de ex-próximos.
Pensei ter nascido em privilegiado escol? Pensei mal.
Português até o tutano, é de Cacilhas a minha mareação.
E mais longe não vou, que me desimportam índias & brasis.

Prefiro, mas de longe, o anis.

II

Diamantino Pinto Amável Lucas, mais te recordo
quão menos de outros me lembro, se acordado.
Encerrada ao trânsito está a rua ex-nossa,
esse tempo já não torna nem em tornado.

Rogério Augusto Botelho Nunes, nenhum substituto
acudiu a de ti suprir a amargurante ausência.
Não, não mais ao acudir da hora-merenda
nos acasalaremos mordiscando queijo à flor de vinho.

É sexta-feira, o frio januário campeia p’la noite,
cuido que me não acudireis em superlativa soledade,
há que, a todos Vós, deixar-Vos dormir em dispersão,
integrais agora a geral insignificância có(s)mica.

Por um punhado de grãos cozidos em caldo (não mais),
daria a minha alma, fôra esta descartável do corpo.
E em salões-de-tango eu desdobraria amabilidades
que, sem de cortesia serem, corteses (a)pareceriam.

Sim, vezes há em que, às vezes, penso nos desintegrados,
esses nomes que foram meu povo mas agora mármore,
importa-me zero que mórbido me chamem por tal,
só em sonhos voltam eles a agitar as patitas.

Até Novembro próximo (lá chegando, se), a condição pecuniária
minha é de cêntimos esparsamente atirados ao vento.
Problema meu, não do alegre mundo da mocidade mais recente.
Nem dos colocados que vejo bocejando aprazíveis charutos.

Janelas altas de prédios que não frequento: que cortinados?
Senhoras medianas de mediano trato: que me não dizeis?
Cães magros como varetas de chuva: que me perdeis?
Mãe & Pai que em vida tive & e vida me deram: que de nós?

À beira de alaranjado candeeiro verde, leio profundamente.
Pouco aproveitarei ante o idiota que p’ra emprego me entreviste.
Leio grego traduzido, este não é século de cosmogonias mas de agonias:
USAmericanos tiveram o Trump; os ex-Sovietes têm o Putin.

Aferventei hoje espinafres sobre caldo de vaca-arroz.
Comi de pé em cubículo devidamente lavado.
Não sou o pior dos homens, estou apenas longe do melhor.
Demando em versos a porra de algum sentido resgatável.

Não tenho, propriamente, sido bem sucedido.

III

Os idiotas da televisão condicionam os idiotas que os vêem.
A opinião nunca é pensada, vem de autocolante.
É triste haver tanta escola mas tão pouco ensino.
Triste é tão pouco ensino, menos ainda aprendizagem.

Nunca mais te escrevo, Salamandra, sequer um verso.
Tu tens catorze anos – & eu nem doze perfiz.
Há muito prefiro a garrafa de anis.
Amo-te, Salamandra, mas não me quero perverso.

Só por-verso me quero, entendo, apresento.
A comunicação é nula, sabes a que venho (bebendo)?
Os meus prédios-cinzentos-de-Queluz são de outra comarca:
quem entende, entenda; quem não, compre ou venda.

De quando em vez, vou à terra-natal de minha Mãe.
Reencontro mui pouco do que me apeteceria?
Estou velho do tempo & longe do dia
em que meu Pai por lá era também.

Sim, escrevo hoje como copioso príncipe liberto:
uso a minha gramática & em sintaxe sou esperto.
Tenho porém certo suspeito volume em meu rim-esquerdo:
ou nascença não repito, ou morte eu herdo.

É triste, por vida usada, chegar a compreender Pessoa.
Antes tal obra fôra maluqueira, nada para nós-humanos.
É triste concordarmos com tal tristeza: humana-natureza,
sim, órfão tão cedo de pai, um padrasto, África do Sul como o João Rendeiro.

Lembro-me do hóquei-em-patins gritado pelo Artur Agostinho,
aparecia nos filmes a Revolução-28-Nacional-de-Maio.
O Cabeçadas, o Gomes da Costa, o Carmona, a piça:
este país sem remédio, o rombo das espadas.

E mais o banana-Sidónio, o das Sopas:
& a atracção dos analfabeto-populares.
E agora o telemóvel, bolso traseiro das roupas,
conforme a burra-moda por os bares.

Agradeço ao meu Irmão Rui os sapatos que uso.
(O Rui é morto, os sapatos vivem em meu andamento.)
Agradeço ao meu Irmão Jorge o Cesário Verde.
(Ninguém lê o Cesário, nem o meu Irmão.)

(Sabeis Vós segredo de quem versos estes V. diz?
São versos de cunho exist’essencial’mente infeliz.)

IV

Podeis pensar antagónicos à minha vida os Antigos Gregos.
Pensareis mal, Vo-lo digo claro, se tal pensamento tiverdes.
Eu tenho descurado em sombras luzes-sossegos.
O resto que não lerdes? Será quanto quiserdes.

Falo agora, muito a sério, de minhas leituras feitas.
A maravilha de Ruy Belo – & a de Carlos de Oliveira.
(Com que solidão, Daniel, ao teu corpo deitas?)
(Deito-me com lobos d’Aquilino pela mais alta Beira.)

Tenho fotografias de criança sem mal expresso.
Os mais velhos da imagem não eram da morte.
Eu só lá estou bonito porque tenho sorte
d’entretanto escritor com livro impresso.

A maravilha
etc.

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Canzoada Assaltante