25/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 729

© Irving Penn


729

Terça-feira,
24 de Agosto de 2021

    “Em póstuma vigência, a vida do observador há-de ser contada – e avaliada – pelos elementos mesmos que a observação tenha reunido, Zé” – disse Raul, saindo-lhe das narinas o fumo do Chesterfield que ia tragando. Zé bocejou. Raul percebeu, disse que ainda tinha muito que fazer até se fazer noite e saiu do Café. O restante não bocejara (só) por enfado mas (também) por fadiga sincera. Deitara-se tarde e levantado muito cedo. A conversa com Raul, é verdade, tinha sido o monólogo de costume. Nisto, deram as onze & ½. Zé pagou o vermute, decidiu ir indo pela fresca até onde almoçar. Foi pela João das Regras, cruzou o rio, comprou tabaco no quiosque do largo, abancou para comer na da Gala. Já lá estavam Tino, Varito & Nísio, os três-da-vida-airada. Comeram os quatro um vasto cozido-à-portuguesa, cujo vapor perfumava por dentro a resignação de estar vivo. O vinho vinha em púcaros frescos de barro-vermelho. Consolaram-se sem esforço nem remorso. Dividiram manamente o prejuízo, foram-se ao Madrid da Direita beber cafés & bagaços. Jogaram a sueca até às quatro & ½. Dispersaram-se com lágrimas falsas.
    A incerteza encontrou uma aberta, instalou-se de supetão em Zé, que a sacudiu pela rua como quem despacha um importuno de seita religiosa. Foi ao Arcádia telefonar ao filho. Ninguém em casa. Seis da tarde e ainda o filho na rua. Mas era terça-feira, dia maior de aulas do rapaz. Problema nenhum. Comprou o vespertino no quiosque do largo, cruzou a ponte, voltou pela João das Regras. Já Raul lá estava, observando postumamente tudo.


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Canzoada Assaltante