19/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 722

© Tina Modotti



722

Quarta-feira,
18 de Agosto de 2021

    A nota rosa de uma casa entre silveiras, desta perspectiva, é para já o meu ganho do dia. Manhã muito cedo, como antigamente, salvei-me do afogamento dos sonhos. Lavei-me a frio, emborquei café a ferver, botei-me à rua sem procrastinações tolas. Não foi uma nota boa, não foi uma noite má: a noite foi. Já a matina nova me servia como camisa mandada fazer por alguém que me amasse, me soubesse de cor as medidas. Aqui estou, tenho para duas horas, no mínimo, de espera. Não gosto de esperar – mas nada alternativo hei, por ora.
    Em uma coisa acertei: é sensato o afastamento. Uma pessoa cava a sua trincheira, povoa seu mesmo reduto, nada a salva, ninguém a perde. Galeria ilusoriamente móvel, todo um elenco pretérito finge querer (& crer) participar da pessoa, da vida dela, das contas da pessoa, da missão – se alguma – dela. Nicles-batatóides: ilusão tudo.
    Já a rosa-casa fica em invisível além. Dei passos no sentido oriental da urbe, mais betão agora do que vegetação. Gente de nome escondido, vestida como eu de trapos feitos em série mecânica, maralha que não dá para individuar. Consumidores de farinha dourada em fornos eléctricos. Hirsutos, gordos, escanzeladas, pintadas: machos & fêmeas clonando-se pela têvê, iguais como ovos, espelhos meus. Sentados em uma resma de tabiques manchados de cimento, quatro operários devoram sandes, entremeando a mastigação de goladas gulosas de tinto. São já, por conseguinte, dadas as dez. Não é tarde, é ainda cedo para quase tudo. Melro sozinhíssimo patinhando por talude atapetado de agulha-pinha: vivaço, de perfeita aerodinâmica, bico-d’ouro. Caminho ainda frescamente. Emborquei café-com-leite num estanco não-longe do benemérito busto de B.B. (1877-1977). Desfaço a hora. Não sei se estarei safo pelo meio-dia, tenho o Gatito sozinho em casa, não gosto de imaginá-lo presa de alguma humana inquietação. Devo ter dormido, nocturnas, três horas, não mais. Na última do trio, sonhei com os meus Velhotes & com o meu Canino Amarelo. Não foi uma revisitação boa, nem gentil a emoção: fusão & confusão de estados de saúde, incriminação reflexa, temor & tremor quási nietzscheanos. Desenredo-me ora desses liames pegajosos. O Pai não me falou – mas escutei-o. A Mãe falou –mas não a mim, sim a alguém que não vi nem soube quem fosse, o Canino pareceu-me tristíssimo, doía-lhe a velhice, percebi eu. Já não, não já quero dar largas à lembrança infecciosa – arreigadamente falaciosa, por ser mnemónica de sonho, gaze tecida de vapor, fumo de fogueira nenhuma.
    Em sala-de-espera. Corrijo: não sala mas corredor dando a portas numeradas. Cada número, cada gabinete. Especialistas encanecidos. Pacientes mascarados banco-sim-banco-não-banco-não-banco-sim, puta de pandemia anti-social esta. Não vejo jeitos nem modos de. Esperar. Emprestar o tórax a quem sabe de humanidades c(l)ínicas. Chão de mosaico verd’escuro pintalgado de preto com explosõezinhas ambarinas. Paredes texturadas. Portas cor-de-laranja-velha. SILÊNCIO POR FAVOR ESTÁ NUM HOSPITAL: as pré-admoestações não gastam vírgulas. Uma dama de sandálias fitadas de ouro-taiwan. Calções que acabam logo que dobrado o joelho, brancos. Algodão rosa-choque, a blusa. Unhas manuais & pedestres sem verniz. Deve ser da minha idade – mas, ela, de mor estragação. Outra dama: blusa leopardo-grisalho, cabeleira oxigenada, pele de lixiviosa amarelidão, sapatilhas vermelho-circo, calças de ganga-elástica. Não larga o telemóvel. Cavalheiro: de peruca mais falsa do que Judas, sobrancelhas devastadas, camisa azul-cobrador-do-eléctrico, sapatos de napa-taiwan. Lê o Record, claro. Ar de taxista espoliado pela Uber. Eu também, digo, em espera. Eis-me: camiseta encarnada com bicharoco verde (lacoste-dos-ciganos); calças coçadas como eczema azul; butes pretos em segunda-mão, digo, pé. Espero. Mais de meia-hora passada sobre a convocatória oficial. O Gatito em casa, oxalá dormindo. Sentimento pessoano: de “uma saciedade antecipada na asa de todas as chávenas”. Mas isto sem particular amargura ou merencória lassidão. Estou vivo. Respiro, digiro. Detesto menos vezes mas de melhor pontaria. Amo com cuidado & acuidade. Isto tudo vai tudo dar ao mesmo. Recipientes verdes de desinfectante para as patas. Uma velha de muletas, trôpega como as galinhas sem galo: sentada na diagonal, pele de pergaminho, grosso cordão com pendente da-de-fátima. Expressão vítrea, mãos de esmalte, prontinha para a última-corrida-última-viagem. Suponho-a octo-upa-genária-upa-upa. Deixaram-na ali, duvido que a nora volte, há por aqui cama-mesa-mortalha-lavada, duvido que o filho não tenho dito à mulher livra-te-mas-é-da-velha-traz-mas-é-o-cordão.
    Caraças: já bocejo. O vapor da expiração enevoeira-me as cangalhas. Tal é a belida, que dou por mim em casa, atendido & aviado da consulta. Olho langorosamente o meu leito mesmo. Estico-me à escala, já se me adoçam as viseiras, adeus-ó-rosa.


 

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Canzoada Assaltante