11/08/2021

PARNADA IDEMUNO - 702

702

Terça-feira,
10 de Agosto de 2021

    Ático Jasmim aguardava-me no pórtico. Cheguei, fomos ao bufete, tomámos café. Passei-lhe a guia, ele conferiu as cifras, sempre escrupuloso. O assunto não nos tomou vinte minutos. Antes das dez já estava eu cá fora, livre para o santo resto do santo dia. Fui escrevendo mentalmente enquanto descia a lameira que intermedeia hospital e centro comercial. Era como atirar barro transparente a parede invisível. E foi em aquele meu silêncio cujo cognome é desprezo. Mas estou a misturar as coisas. É como as penso, como as vou sentindo, agora que de facto as escrevo.
    Tive por ali mulher há mais de vinte anos, tudo passa. Não fui comido por tolo, não então, vá lá venha cá. É só um resíduo tristonho, agora, celofane usado mas não atirado fora, ainda não achei contentor para ele. Continuei. Ainda andei um bocado, porém a matina pôs-se a aquecer mais do que deveria, estes são os tempos da fornalha global, merda para eles e merda para nós.
    Apanhei o autocarro na ladeira do antigo santo. O casario envelheceu como gente. Gostei de desandar dali. Fui comer a bifana no pão ao MijaCão. Acabou por ser uma de iscas enceboladas, entrou-me bem no sistema, fui liberando arrotinhos contentinhos & surdos a caminho do quiosque das lotarias. Comprei uma mais o jornal, subi a de Coruche, transversei o Largo de D. Carlos (I & Último), parei na Rasteiro Franco, saudei a Fernanda Chana Peres Marques, esperei o meio-dia entre os plátanos poeirentos da minha vida.
    Ao meio-dia & dez, Ático atirou-me por telefone a confirmação, o deferimento, o OK para a próxima encomenda: dia duas vezes ganho, portanto. Decidi almoçar mais tarde, volta das duas, no da Manga. Nada disto importa – mas pode ser contado, mal também não faz nem traz ao mundo. Almocei das duas & ¼ às três & dez. Fui conversando com a tripulação da casa, que veio almoçar nas mesas em torno da minha. São gente de trabalho, formiguinhas videirinhas, como se diz que deve ser, não sei nem me arrisco a moralizar: nem sobre tal, nem sobre o que for, farto sempre andei eu de passarocos-passaralhos-de-arribação.
    Cá fora, na de Sidónio Cortesão, o calor tinha-se volvido besta ubíqua & omnívora. Por me ter restaurado tardito, interditei-me de imediato o ir de imediato para a cerveja gelada do estaminé do Rico Dragão. Não. Acabei, antes, de ler o jornal à sombra dos antigos Correios, daquele lado que dá para os Mortos da Pequena Guerra. A exsudação começou a incomodar-me a sério. Entrei na retrosaria de Milonga-a-Bonita, comprei uma camisa branca, embrulhei a enxovalhada num saco de papel, esqueci-me de saco & camisa velha no contentor da Sagres. Davam as cinco quase quando apanhei o de Celas. Apeei o cadáver-adiado (viva, D. Fernando P.ª!) ao alto da Sereia, ali sim, as sombras eram vivas como marés benignas, dessas ao luar romântico dos naufrágios em verso-heróico (viva, D. Sá de M.ª!).
    A essas sombras, a essas trevas frescas, é que pensei em ti.
    Não demorei muito essa toleima do meu coração.
    Faz de conta que nunca te vi.
    Dou-te um tostão.


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Canzoada Assaltante