11/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 463 a 465

© DA.


463

Quinta-feira,
10 de Junho de 2021

    Escrevi a José Vicente esta carta:

    Meu excelente Zé-Vic:

    nós por cá continuamos um só. Encontrei um abrigo decente. Não tenho vizinhança, só pessoas que vivem no mesmo prédio. É assim em muito lado, não me queixo nem disso nem de outra coisa (ou outro alguém) qualquer.
    Tenho aproveitado o ócio forçado para aprender mais música. É arte que não consegue cansar-me. É infinitamente bom saber que há infinitamente boa música. Atravessa os séculos em perene novidade. E mais: feita de tempo audível, ela logra anular o Tempo, surda à devastação dele. Digo isto assim porque, como sabes, tenho a mania.
    Ao contrário de (bons) hábitos antigos, tenho vivido mais as noites & menos as manhãs. Para mais, vem aí o Verão, que cada ano acho modo de detestar ainda mais. Antes, levantava-me às seis da manhã. Por estes tempos, tem sido essa a hora a que, exausto de letrinhas, me deito. Quero (e vou) recuperar a rotina antiga – não por ser mais produtiva (não sei se o é deveras) mas por me angustiar perder horas de luz.
    Falo com quase ninguém sobre generalidades – e sobre particularidades, com ninguém. Os zé-vicentes da minha vida rarefizeram-se-me como cubos de gelo atirados ao mar. Ou ao whisky, em dia bom.
    Escrevi ontem uma coisa, lendo a qual quaisquer dois-de-testa percebem que sou um doidinho pelo bom Cesário V. É verdade, adoro o pobre rapaz tão cedo extinto – mas não o imito ou plagio, não o pasticho ou emulo. Leio-o muito, é tudo. Acontece-me brincar com a música dele. (Ponho aqui itálico em música porque bem me entendes, sempre me entendeste bem,)
    Quanto a leituras, relatório fácil: muitas, quase depressa & bem. Sobretudo releio. Ontem de madrugada, Walter Scott & Proust. Hoje (não te rias), Cesário V. Levo a meio a tese do Pierre Nordon sobre o Conan Doyle. Tenho o Édipo em Colono à cabeceira. E idem o Paul Valéry dos ensaios de 20 & 30 do século passado. E a Bíblia (esta, devagar; vou nos Actos dos Apóstolos). Faço por não mexer em mais para não emaranhar o fio no pavio. Não é fácil. É muita a tentação, insuficiente sempre o tempo – mesmo para um desassalariado como eu. (Isto não é queixume, Zé-Vic, juro que não.)
    Em vez de queixume, gratidão: dos mantimentos que me enviaste em Março, os menos perecíveis ainda me fazem companhia: farinha, conservas, medicamentos – e os livros, claro. A senhora da Segurança Social tem sido muito prestável, mais agora até por causa da pandemia. Falta-me uma estante – mas tu livra-te de mandares alguém trazer-me uma. Por ora, não mandas nem mandes nada. Resolve isso do teu filho, prioridade-máxima, isso sim.
    Penso muito. Ou antes: imagino muito (no sentido de criar imagens). Aspectos (ditos) reais mesclam-se-me com abstracções (mais ou menos) fantasistas. Não é esquizofrenia nem para lá caminha, sossega. É tão-só compensação, por assim dizer. Porque sou, enquanto sujeito, insuficiente – chamo insuficiente ao objecto. (Sei que não estou a exprimir-me bem, mas sei também o tão-bem com que sempre – mas sempre – me entendes, entendeste & entenderás.)
    Vês? Na brincadeira, passa já das duas da matina. Não faz mal. Eu posso ir escrevendo, tu podes ir lendo, pausa agora, retoma quando calhar. Passo a enumerar-te, em linhas mais curtas (se quiseres, chama-lhes versos), algumas imagens oriundas das tais mesclas que supra te referi:

    Lago cuja pele acolhe folhas verdes, amarelas, castanhas.
    Homem de camisa azul (percebe-se ser cara).
    Avioneta sulcando um céu sobre floresta infindável.
    Em bairro paupérrimo, uma associação humanitária.
    Pomares citrinos maravilhosos, belamente cuidados.
    Encontro de fatos-gravatas para conferenciar sobre os sem-abrigo.
    Um rosto feminil-nipónico de desarmadora graciosidade.
    Carteiro entregando uma carta minha ao senhor José Vicente.
    Mulheres-da-limpeza sentadas em muro baixo, fumando em silêncio.
    Ruas desertas, pessoas para lá de janelas fechadas, sonho pungente, acerbo.
    O silêncio dos mortos, percebe-se muito bem; o dos vivos, pouco & mal.

    Nada disto, enfim, traz grande ou pequeno mal ao mundo. Já branqueia a oriente a alva nova. Esqueci-me de adormecer, ando de fusos trocados, talvez benigna me seja a matina. Findo aqui parágrafo, na esperança porém de mais adir, hoj’inda, a esta carta que te quer duas vezes bem, seja hoje, amanhã também.
    Ou então fica para uma mais ou menos próxima.

P.I.

464

    Manhã toda dormida. Não sei se ponho ou não a carta para José Vicente no correio. Talvez lha remeta por aqui apenas, não penso mais nisso. Outras linhas me convocam. Afazeres mínimos. Cortaram-me o cabelo (pente-4), estou mais leve. Da outra banda do lago vem chegando a barca que arrasta a noite. E a noite é o lago & é a barca.

465

Herberto Zana sabe coisas da guerra que o Diabo esqueceu.
O rosto dele parece talhado a cêra dura como o diamante.
Há anos que projecta escrever sobre o que sabe.
Nunca escreveu nada que pensasse em forma de livro.
Na guerra, anotou lances, situações & epifanias.
Trouxe o caderno, mostrou-mo, cheira a ardido.
Posso ajudá-lo, desde que lhe faça bem.
Digo: posso ajudá-lo a formalizar o depoimento.
Não devo aproveitar-me dele, parasitá-lo, verminá-lo.
O livro tem de ser todo dele: como as mãos & os olhos, só dele.

Marta Quina é pessoa com quem pode conversar-se sem porvir.
Dá o fresco no patamar que franqueia vista para o bosquete de cedros.
Se espero o autocarro e ela passa, uma saudação basta.
Se nos encontramos na fila da padaria, qualquer assunto é viável.
Como eu, tem ela muitos anos disto.
Já ambos vimos a Cidade mudar-se conforme as nossas idades.
Para mais, frequentámos o mesmo liceu & a mesma faculdade.
Ela tem um casalito de netos, são os brinquedos dela.
Não teve um casamento seguro, mas que durou até à viuvez.
Agora, os netos relançaram-na na dinâmica do mundo.



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Canzoada Assaltante