08/06/2021

PARNADA IDEMUNO - 447 a 454



447

Segunda-feira,
7 de Junho de 2021

    Certo frémito idiomático perpassou-me hoje à leitura do adjectivo ancilar, correndo já no mundo exterior as três da tarde. Pareceu-me ideal para tornar prismáticas, por assim dizer, as cores do substantivo a que o aplicasse: gesto ancilar, caminho ancilar, palavra ancilar, ancilar vocação.
        (Às 15h23m, dei como pronto o parágrafo.)

448

  Escrínio para opalas, ágatas, safiras, esmeraldas, hipérbatos, pérolas improváveis de ostras impossíveis – a Língua. Luz jamais em declínio. Máquina transparente, senecta infância perpétua, farta de maravilhas nunca.
    E daí, também, que, uma vez por semana (sub)indo às Chãs de Semide a ver o meu Irmão, me deixe jamais de cativar a petrificação do mar feito ondas de serrania, oceano de pinho susceptível de fogo, ígneo pélago, labareda oblíqua que a esmalte corusca & corisca ao sol.
    Nasce esta prosa de ser bonita a luz, faz ela, da janela, tela. Disso – e de estar eu merendando chá com bolachas-de-corinto, não estando hora minha prometida a ninguém que alguém fosse, seja ou finja ser.
    Sim, é a Língua a mais apurada gliptognosia: basta ler como ela diz a luz do dia, essa mineral transparência do silabário.

449

    Com o Paulo Fraga, o Fernando Calado, o Gervásio Cotrim & o Alcides Barbosa é que é bom ir em safari à cervej’amendoim – única regra: cada amendoim, cada mini. É um fartote copioso, um risonho bródio, um ágape simples como nós cinco, por junto & em separado.
    Eram da nossa quadrilha os ora extintos Ilídio Rama, Benedito Acácio, Alberto Cação & Juvenal Ataíde. Saudades deixaram, à sétima mini não falha quem os evoque.
    Paulo Fraga, solicitador; Fernando Calado, pneumologista; Gervásio Cotrim, herbanário; Alcides Barbosa, sonoplasta; eu não faço um caralho.
    O Ilídio Rama era radiologista; o Benedito Acácio, padeiro; o Alberto Cação, maquinista da CP; e o Juvenal Ataíde desfazia mais ou menos o mesmo caralho que eu.

450

    Cotes Ângelo disse de si mesmo nunca ter sido um recluso. Que em vez disso era pessoa reservada, pouco-nada dada a conversas assim-assim com gente assim-assim. E que preferia pouca corda a muito arame. Sobretudo do farpado, imagino. Era amigo de David Jonas, como ele já falecido. Sei onde é a penúltima casa de Ângelo, gostaria bem de tê-la por residência, bonito planalto, bela edificação humana. (É só um desabafo ligeiro, talvez leviano até, meu – nunca a terei, nem parecida.)
    Genoveva, um sábado, apresentou-me a Cotes. Foi um encontro auspicioso. Era no tempo em que havia ainda uma coisa chamada epistolografia. Trocámos cartas gentis, muita conversa sobre livralhada, música, pintura, Coimbra, Peniche – e Zurique, onde ele acabou seus dias. David Jonas, não o conheci. Genoveva vive em Toulouse, a cidade de Claude Nougaro. Nunca mais a vi, o mais certo é revê-la nunca mais também. São assim as vi(d)as.

451

O comboio nos alvores do inverno
devassa os campos cultivados, os olivais,
é certo como o céu, como as nuvens incerto,
não conheço quem desgoste de vê-lo passar.

Um trecho de paisagem, depois outro,
infinita galeria de telas à janela do comboio,
como é bonito ver as árvores rápidas,
as casas pregadas ao chão pelos casamentos.

Há demasiado tempo que só o vejo passar,
demasiado tempo que o não integro,
entusiasta até das coisas afinal tristes,
tristes enquanto como ele não passam.

452

Esplêndida inutilidade da minha vocação
Esplêndida sim, a invisibilidade é uma arte
A própria como a alheia, vidro tudo
E calhoada é o que por aí não falta.

453

Espelho ou espectro, dá o mesmo
Um quintal onde governar a infância
Ter pena dos crentes, amar os animais
Compreender & guardar, nunca desistir.

454

O meu Pai morreu há 27 anos.
Costumo vê-lo fora dos sonhos.
Na Sá da Bandeira já o vi duas vezes.
Eu subia, ele vinha descendo.
Não deve ter-me visto, não acenou de volta.
Na Portagem, dirigindo-se à ponte.
Está sempre a chover, quando o vejo.
Ou então é dos meus olhos, não sei dizer.

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Canzoada Assaltante