13/04/2020

VinteVinte - 17 & 18 (trechos)




17.

DIGA DE SI

Coimbra, terça-feira, 25 de Fevereiro de 2020



Em regular banho-maria, pensamento & entendimento marulham cabeç’adentro. Regras como excepções, prolongado ardor como pontada de frio – tudo (con)vive no que depois pode ser escrito. Assim, pois:

I

Gentes remotas dizem de si na pantalha televisiva. Circunstâncias delas, do mundo, do tempo que lhes é atirado – e retirado também.

II

Alguma coisa para amanhã – sempre sob o signo do talvez: ou do acaso-(a)caos.



18.

FALA QUEM SABE & MAIS QUAISQUER COISITAS

Coimbra, sexta-feira, 28 de Fevereiro de 2020



I. FALA QUEM SABE

Amanhã não sei
Hoje não sei
Ontem sim sei.

Ontem amo pouquíssima gente mas muito.
Amo-a tanto, que dela, tão pouca, faço muita.

Uma pessoa é o país a que chega morrendo.
A pessoa vive partilhando luz mas é sombra.

Não é que eles não continuem mas são é transparentes.
Refiro-me aos mortos desta minha rua.

Todas são minhas, as ruas.
Tenho muito onde cair morto.

Diziam – quem diria – que eu não chegaria.
Digo: a marinheiro, mas sim cheguei:

Navego duas Filhas, são quanto deixo.
Dobrei-me pois, pois que um só nasci.

Nunca ficareis mal comigo porque
Nunca ficareis comigo.

Amanhã não sei
Hoje não sei
Ontem sim sei.

Ontem, 27 de Fevereiro de 1933, nasceu Ruy Belo.
Ontem, 27 de Fevereiro de 1933, incendiaram em Berlin o Reichstag.

Nascemos leite, tornamo-nos mármore.
Pobre de quem é de coração furiosamente apícola.

Tenho tanta pena de ser tão rico, Maria, tanta.
Tanto me pertence, que me esqueci de pertencer.

E no entanto os animais de quem fui.
E no entanto aquela casa cuja cor me olhava.

O rosto de minha Mãe certa manhã a ser janela.
As mãos de meu Pai cujos dedos me olhavam a cores.

Subo à boca quantas palavras me elevem.
Maria: olha que eu, qualquer dia.

Sei sim ontem.
Sei não hoje.
Sei não amanhã.

II. QUATRO QUADRAS P’RA-PULARES

Agora que o conto, pode enfim retroceder o amor.
Habito a sexta-feira mais clarividente.
Gente-de-algo me não habita, vil estupor.
Abri as mãos: eram estrelas-de-apenas-gente.

Serei ainda aquele fantasma que em Viseu?
Gonga o meu coração clepsidras de areia?
Tenho afinal de casar-me com mulher feia?
Vou ser o mijo ou a sombra do leão-coliseu?

Camilo Wenceslau Pessanha de Moraes.
Daniel Leite dos Santos Abrunheiro.
É nome que agrega os de meus Pais.
E sim acho piada a ter sido Abílio e Manuel o Guerra Junqueiro.

Esta noite serei teu mas sem linho.
Vamos para trás daquelas sentinas.
Olha q’eu nunca paguei o favor de meninas.
Esta noite me serás mas só se eu sozinho.

III. FÈZADA

A Mãe foi à Praça, o Pai não volta.
O canário é cenário (amarelo-limonado).
Leio o meu Nemésio de alma à solta.
Qualquer dia começo & fico acabado.

De boa-fé à má-fila ando eu tão fartinho,
que mortinho me sinto vivinho-da-silva.
Sem dinheiro é que tudo me parece selva,
moedas para o pão & notas para o vinho.

O Rui foi-se à morte à sorte do Jorge.
A Mãe foi-se à côrte a desnorte do Pai.
Que raio haverá aquela Praça em alforge
que tão rico seja, ninguém de lá sai?

A infelicidade dos filhos-da-puta, sabes tu o que é?
É rosa orvalhada do rocio matino.
Já errei no que amei, mas não quando menino.
Nem Praça nem Pai nem Mãe nem fila nem fé.

(...)


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Canzoada Assaltante