15/12/2019

CADERNETA PRETA - 14




14. Um Adeus em Branco




a) Sábado, 16 de Novembro de 2019


Habitaram esta gândara clãs de tão comum normalidade, que exumá-los a lápis do tão merecido repouso chamado esquecimento só pode ser mania lapiseira – tinteira, por vezes –, de modo algum urgência histórica. Quintas laboriosas, prósperas, desempenadas, de amplos hectares, culturas assisadas que a meteorologia de então fomentava à hora certa na estação exacta. Boas árvores, fauna sem moléstias importadas. Muito boa água – freática, como pluvial. Pedra onde é de pedra, torrão onde torrão.
Outra é a minha dem’hora. A gândara que me coube, a verdade é esta, não frutifica. Os daqui não aram um are. Betãoplenaram o que de árvores houve. Não há clãs, só gente-só colmeando quartos-ao-mês. A água é plastificada. Nem do esquecimento há que desenterrar-nos. Pedra só pedra, nem torrão à vista.

(Interessa-me da realidade o que ela vier palavra.)

(Trato o Gato como fui criado: em palavroso comentário do que aí vem, já veio, pff.)

A caminho, um tanto alquebrado da ossatura já cinquentenária mais meã, fruí a eternidade imediata do Sábado. Sou varão desta vara. Tal como reconheço os rostos-satélites desta cidade lunar, tal serei já reconhecido por alguns varões da minha geração & upa-upa. Reitero: é disto que falo quando escrevo pertença – mesmo quando já não-presença.

Descura ou não, resulta o mesmo.
Afias o lápis roendo-o em unha.
A repetição ’inda é credora de pasmo,
eu tinha cão que não tinha tinha.

*

De verbo só embora mandei rosa
a pessoa sem luzes de proscénio.
Tenho rosas a mais, maravilhosa
rosa d’água fresca com oxigénio.



b) Domingo, 17 de Novembro de 2019


Escrevo entre as cinzas do Domingo. Já não arde a rosa que foi. Há felizmente silêncio, dentro & fora. O candeeiro à cabeceira não zune, trabalha sem um protesto. As coisas do dia aconteceram sem História. Fora, longe – alguém morreu; alguém nasceu, morrerá. A solene brincadeira que tudo isto é, aqui como na Dinamarca, no Japão todo como ali em a trivial (mas nossa) Moimenta da beira.
Não li muito. Ou antes: não li de mais. Planei- é isso – planei. Agradou-me, pela janela do quarto, a condição invernosa do dia. Falta-me aqui lareira. Tenho de comprar chá-preto, só duas saquetas me esperam. Conto arrumar livralhada amanhã. E dar-me (ainda) mais a certos papéis, meus fiéis depositários, meu derradeiro tesouro. Não me telefonaram nem telefonei. Vi chover. O panorama a oeste, cerrado em chumbo líquido. Tudo muito bonito. Uma lareira teria sido a perfeição. Não foi – mas não houve mal por tal.

[Tenho ganas de voltar a ler Verne, Dickens & Scott (Walter, não Fitzgerald).]



c) Segunda-feira, 18 de Novembro de 2019


(Saindo de casa, o único lugar a que ir é à Thomaskirche, em Leipzig. Mas enquanto não:)

Quatro homens em pleno trabalho de equipa. Anos disto, todos & cada um. Sedimentou-se memória-a-quatro nas oito mãos. É tremenda, a força da gravura. Pelo entardenoitecer separam-se, dois deles vão ainda a qualquer lado juntos. Amanhã volta(m) a ser dia.



d) Terça-feira, 19 de Novembro de 2019


Morreu José Mário em Branco.


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Canzoada Assaltante