12/12/2019

CADERNETA PRETA - 12




12. Sofisticação do Comum




a) Terça-feira, 12 de Novembro de 2019



Em diversa direcção do Tempo sinto certa sofisticação, em grande porção criada pelo próprio, chamemos-lhe assim, acto-escrevente.
Marinheiros da Mercante em jornada de folga pela cidade portuária. É o primeiro par de horas sem chuva.
Trinta quilómetros para o interior, dois homens – pai & filho – amanham campo. Pertencem ambos à mais rudimentar primícia d’acção: sobreviver – vivendo o possível enquanto tal.
Em saleta forrada a excelente madeira, perfil de mulher antiga escrevendo cartas sem pressa nem esperança de resposta.
Quanto aceitamos sem abarcar? Quão nosso é o que consegue aproximar-se-nos?
Com a própria finitude tropeçamos em totais incompletudes. Quarto branco, jamais exausta repetição dele no branco. Condenados ao corpo, andamos às sopas. É preciso começar a pulsão, integrar o arvoredo, não ser tão estranho à terra.
Aquela figura de homem sentado na gravilha do monte, o apostolado para ninguém da sua solidão, tão próxima afinal da do animal, da do rochedo, da desta caderneta.
Uma noite, sem sonho, sendo bom sentir o vento reordenando os elementos terrenos, nada pela volta do correio.
Pai & filho no trecho de campo, marinheiros bebendo em espeluncas, um ser antigo ante cartas senhoris.
A sofisticação do comum, a força irresistível do para-humano, por assim dizer. Tudo isto um dia nada, desaparecido o sujeito conhecedor. Tão quarto (em) branco o que nos é dado a troco de uns riscos em papel sem resposta.
Legibilidade? Inteligibilidade? Eu travo essa batalha em prol de uma muito peculiar pátria: a dos Sós-de-Voz. Agora na tarde nova:

António Junho Cavalheiro, guardião de sinais capazes de recidivar, por assim dizer, situações exemplares de perplexidade humana. Post-mortem, o seu legado integra o cabedal vivo da filha, Júlia Antas Cavalheiro. Esta transmissão é boa-nova, por adiar o perecimento de uma sabença articulada, nem sempre pragmática embora;
Germana Sacra Tovim, afeita a visitas ao pontão de Brighton na época-dita-baixa. Foi extremamente aprazível encontra-la por lá, oferecer-lhe mel & novas de Portugal, a que ela, por casamento, deixou de pertencer;
Leonardo & Amélia Tavira, par de irmãos que pode evocar aquele de Casa Tomada, de Cortázar. Professores ambos no Colégio das Irmãs da Rainha Leonor – ele, de Música e de Alemão; ela, de Civismo e de Artes Domésticas. Sossegada dupla, gente de um só espelho;
Renato Palestino Haraldo, moço amador de mistérios cósmicos, servente de laboratório farmacêutico. Vive com a mãe em umas águas-furtadas arejadas e altaneiras sitas na Bissaya Barreto. Conhece histórias esconsas dos primórdios da nacionalidade;
Sebastião Martírio Lucas, exímio jogador de damas, por tal assíduo utente do Ateneu Lusitano, agremiação de amadores do tabuleiro sediada na sobreloja do Café d’A Pernambucana.



b) Quarta-feira, 13 de Novembro de 2019

Ainda pode acontecer que, sem sair do reduto escrito, uma volta pela comarca, chamemos-lhe assim, dê frutos válidos, quando não valorosos.
Uma casa senhorial, de quinta, quase imodesta mas afinal singela. Uma outrora de bolachas ora guardiã de cartas alfazemadas, impossível desamá-las.

Por ardil numero entradas da caderneta com notação dia/semana/mês/ano. É para não parecer completa a desorientação. Outro dia, a ele chegando, quase lamentarei ter-me infligido tal resignação, haver-me matriculado na ordeira furgoneta para o matadouro.

Sou em aliança com a Língua. Trocamos gracejos não isentos de amargura. Sinto que Ela nos sonha (&sonda) a todos, sei-nos nem todos permeáveis a seus/dEla magistério & sortilégio. E porém Ela (co)move-se.

Sem sair daqui, ir na mesma – uma manhã de sábado, amena temperatura, pela orla fluvial, primeiro, depois pela via nevrálgica do pequeno-comércio. Em escaparate, publicações instauram a permanência de motes & voltas deste sector da dita Civilização: o próprio Lord Lucan supostamente avistado em Gibraltar; jantar de antigos Estudantes do Império no Grémio de Escribas; o único amor fêmeo de Satie; bustos de pau de matronas oficiais do Salvation Army; o caso muito revisitado das Irmãs Papin; a mulher soviética de Lee H. Oswald; gajas muito boas do Irão pré-Khomeini; maçonaria à portuguesa em exposição de símbolos, parafernália, brochuras ratadas & datadas; rol de colaboracionistas-Vichy escapados a julgamento e com posterior sucesso na função-pública gaulesa; libreto de My Fair Lady; e um mapa da Cidade como ela era vista do céu pelas aves de 1862. De seguida, no Café Arcádia, bolos & café-com-leite. Felizmente, cedo vai sendo ’inda. Cheira a bom tabaco, é de bom-gosto a vizinhança de mesa. Felizmente, vem ’inda longe o século XXI do fundamentalismo-higiénico. Tenho entre dezassete & vinte anos. Nada me dói. Razão nenhuma para uivar à Lua. Hei-de compor uma caderneta em que constem da galeria de mortos alguns destes que vivos estão num sábado d’algures 1981-84. Este além, rumo ao Café Santa Cruz, amador de Rimbaud, Verlaine, Baudelaire, Apollinaire, Mallarmé, Afonso Costa & demais (c)artolas de repúblicas nadas-mortas. Aquele acolá, consabido homo mas de viril ademane, de família abastada, algo até de aristocracia apeada. O dos poetas franceses e dos carbonários lusos chama(va)-se Jónatas Joaquim Calema; o dos avoengos brasonados é(ra) Adelino Grão Burgos. Cheguei a falar – não a conversar – com ambos, mas de raspão, sem efeito nem causa, talvez chovesse, talvez porque nunca mais fizesse sol.
De retorno a esta quarta-feira de mais sensata, fixo o olhar em o país a noroeste. Pouquíssimas formigas. Bonitos trechos casa-árvore-pano-de-céu. Na pantalha natural, os elementos parecem ajustados, senão justos. Eternitarde inócua, nem má nem santa.

A miscelânea de elementos é a farinha do meu pão. Não me surge artificiosa, antes sim patente de natural evidência. Talho-a com alguma volúpia. A idade trouxe-me certa cumplicidade para com a descomunalidade dela. Em menino, era fascinante sentir vislumbres dela. Ainda é, ainda me fascina. Tudo é dela exemplo. De tudo faz arquétipo. Não a torno livro simples porque não quero – nem posso, francamente. Prefiro anotar que Gore Vidal clamou a grandeza de Italo Calvino, que por sua vez viu justamente em Colin Wilson um mero “trapalhão” sobrevalorizado. Sei que morremos paupérrimos, por mais onerosos os funerais que nos façam. Sei também – ou desconfio muito – que o valor literário de tal assumpção é irrisório. Poderia trata-la em/com versos displicentes, sem rima nem batida. Já porém o fiz suficientemente. Um verso como:
Sou do Grande Fogo de Seattle, era 1889.
Mas hoje não. Hoje pode arder outro casario. Mendicidade de Leste nos chega. (E sobra.) Ceausescu ri-se nas trevas, decerto. Chão húmido, ar cortante. Queixa-se um velhote de lhe andarem roubando lenha das traseiras. E andam. Tribos clandestinas com o dom da invisibilidade. E da ubiquidade. Altas montras livreiras dando para a rua de analfabetos. Semanas ardem como segundos. Tudo naturalmente se resolve. Mesmo os maus poemas. Mesmo as piores freiras. Olhar para isto sem problema & sem solução. E sim, joeirar a sós. Nem sempre versos, às vezes janelas não-verbais. Pois, nem problema, nem remédio. A pessoa em zona sã, afastada de formigueiros antropóides, utente de veredas que a noite não volve perigosas. O que sei disso, sei-o tanto por lembrança quanto por utopia. (Evito quanto posso – e muito tenho eu podido – o termo desejo.) Às vezes, era pela pureza do frio. Coisitas em casa, ante o pinhal a casa, asseguravam certa ordem, digo, pertença. Houve escolher, mais do que ser escolhido. Os tarados da religião (qualquer religião) diriam que mais pretenso livre-arbítrio (culpa, portanto) do que conformidade (portanto, inocência). Disso não cuido ora. Hei que negar pujança ao ardil infeccioso da tristeza. Nada – ou muito pouco – que uma mão-quase-cheia de dinheiro não resolva. Deu-se entretanto certa pausa, espécie de acalmia, apaziguamento, muda concórdia. Doçura, até, de instantes não arrolados. Para eles, é serviço um pouco de papel em branco.

O rumor marulha de novo, em perene reabastecimento. Teor conjuntural das palavras justas, disponíveis, sediciosas – sambenito, adaga, elmo, pedúnculo, cevado, longilíneo, tufo, vértice, magma, algoz, sinapse, celeiro, juntura, palíndromo, vitualha. Não deixa de ser perdoável a obstinada ilusão (a iludida obstinação, também) da narrativa ordenada. Também sou capaz dela em público. Hei só que emagrecer o vínculo, fingir adesão à desimportância praticante, simular crenças do tipo este-ofício-conta-mais-do-que-aquele, ou a-mentira-piedosa-é-uma-verdade-divina. Ou merda-assim.

Linha de barcos ancorados, algures no istmo de que te disseram alguns encómios. Munificência de particulares saciados. Rotina corporal de avindos com a vinda. Não se trata de verosimilhança – trata-se de enumerações cruzadas, de vectores dinâmicos, de re-conhecimento.
Ou ainda:

Chegam no dia-primo de Julho, instalam-se nos alojamentos há muito marcados, almoçam fora, já se sentem plenos tripulantes do Verão. O pai vai aos jornais, volta depressa, diz que vai ficar uma hora no Café Paraíso do senhor João, bem o merece o velhote. A mãe vai saber de certas coisas que só as mães, não se sabe como, sabem como. A avó faz a sesta na casa de Julho, já rainha de seu santuário íntimo. O rapaz pode ir ao jardim-parque, leva meia-coroa para o gelado baunilha-morango. Eis uma não-história como deve ser, dicunt mihi.

À face da noite, algumas páginas de Garrett quando lírico. (E a noite, em face, dá-se.)

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Canzoada Assaltante