26/04/2011

ROSÁRIO DE ISABEL E DINIS seguido de OUTRAS FLORAÇÕES POR ESCRITO - 19



19. O CORVO PELA POMBA

Leiria, domingo, 17 de Abril de 2011



Pela manhãzinha, a brisa fresca beneficiava a luz nova. À flor do Lis, patitos eram como brinquedos felizes. Dois pescadores à linha sacavam peixe que o Sol tornava numismático-cintilantes. Derivei depois pelo sossego dominical das ruas até chegar a este café, cuja dona acaralha interjeições de rico teor obsceno. Não tem papas no linguajar, a magana. Os foda-ses e os lá-co-caralho fazem-me feliz, confesso. Espero o retorno de Isabel pela hora de almoço. É segura, a luz da hora: 11h14m.

*

Das senhoras mãos tuas recolho
a esmola do afecto, a branda carícia.
O coração me sequestraste, mas a polícia
não sabe. Roubado, com cordura te olho

retratada em a pura mansidão de cada mão.
Viceja entre nós tanta mútua humanidade,
que intemporal se nos volve a condição:
pois que nos queremos sem cadastro nem idade.

Pascais, as pombas lêem o chão a pedra assoalhado.
Eu, eu ando-te por aqui e por todo o lado.
Escrevo de tua passagem os suaves sinais:
não menos que isso quero – nem mais.

*

Noite do Domingo de Ramos, Leiria, 21h14m. O Lis segregou sua noite contínua e rumorosa, não há pescadores à linha nem à vista, patos e peixes dormem seus sonos puros, pré-históricos.
Por ruas mais escuras, solitários parecem-me irremediavelmente desavindos com a vida. Maus dentes, maus cigarros, más roupas: sombras tristes que entristecem quem as sente assim verticais. Fui já um homem assim. Tenho-me evadido como posso de tão pouco gregária comunidade. Faço por fazer mais corpo e menos sombra. Não é fácil – não é fácil para ninguém que por esta ou aquela razão se desalinhasse com isto de viver. Que no meu outono pessoal, enfim, possa trocar no ombro o corvo pela pomba.

Sem comentários:

Canzoada Assaltante