20/02/2011

Ideário de Coimbra - 168


 
© FJ – s/ título – Leiria, Maio de 2010
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168. PROMONTÓRIO VERBAL

Coimbra, quinta-feira, 17 de Fevereiro de 2011

Quem é este homem pela linha desactivada e suburbana? Que poderei ainda saber dele? Dele, a gramática pensativa pode ainda ser lúcida, arborizada?
Estas coisas demando pelo entardenoitecer, ao frio do bairro. Vou colhendo lixo do chão, reciclo o meu labirinto afinal simples, unívoco afinal. Carrego a solidão pela boca como uma espingarda de antigamente. Conheço a solidão deste homem em linha.
Urbanizo o desamparo: sou bom construtor de nadas. Desactivou a via-férrea para a Lousã, a canalhada de Lisboa. Mas – não o terei eu feito também à minha vida? É uma pergunta legítima, a deste homem pela linha.

*

Minha Mãe, está frio aqui fora de si.
As pessoas escurecem até de manhã.
Nem sei o que à Senhora diga.
O melhor é dizer-lhe estes versos.

Vejo muitos pardais e muitas árvores.
Paro muitas vezes na rua, falo sozinho
consigo.
A vida era para ter sido, não foi?

Apoio jovens no estudo da Língua Portuguesa.
Uma é a minha filha Leonor, Mãe.
A Língua Portuguesa é bonita como vós duas,
Mãe.

Um barco escuro sulca-me muito as águas
do coração, não vou mentir à Senhora.
Outras ocasiões, sou feliz ante uma laranjeira,
ando até a escrever este livro só por causa disso.

D-existir não pode ainda ser, claro que não.
O Inverno também roda, também chega a Verão.
Os joelhos já não são os de antigamente,
rangem um pouco mais ao frio


que fora de si faz, é certo.

Nem sempre laranjeiras apenas, eu também
paro a olhar as pessoas, esses pobre animais
de pista de circo reféns da economia, do sal,
da terra, das interdições morais.

Escoro-me de caligrafia, porém, Mãe,
e avanço na senda humana do ocaso
e do acaso. Investigo muito seriamente
as vias do entardenoitecer em Coimbra.

Também me acontece estar de corpo-presente
na Solum e de cabeça, digamos, na Portagem,
perto do Hotel Astória e do Rio Mondego.
A senhora sabe perfeitamente que uma pessoa

é por vezes um invólucro fragmentário.
Um avião a jacto (per)fuma de branco o céu,
agora mesmo: que estranho albatroz ele me
parece, na hora infusa e madrepérola.

Minha Mãe, nem sempre viver é coisa pouca,
eu sei. Ele há momentos em que a cabeça
assenta com perfeição no coração: e então
ela, a cabeça, é rosa em vaso, Senhora minha.

Os versos são ve(ne)nosos e arteriais.
A hora os areja de limoeiros e pardais.
Por agora, minha Mãe, é tudo.
Não lhe digo mais.

*

E quem a Deus procurara, O não encontrara
senão talvez nas aves,
que são a pontuação do caderno do céu,
ou nos operários,
que são as formigas verticais da terra.
Também acontece que as pessoas procurem
nunca encontrar-se:
nem a outras em si mesmas,
nem a si mesmas quando em outras.
Acontece isso, sim, isso sim eu sei.

*

Ele há coisas que eu sei.

*

Vejo daqui em mente um promontório que o vento escalva em frio e fúria. É perfeito para a perdição da pessoa. Antigos animais se extinguiram por esta banda da minha ideia. Alguns de entre esses bichos foram pessoas amadas, gente que amei sem solução nem continuidade. É possível que alguns me tenham amado sem pensar nisso. Agora, é de noite. Agora o coalho sideral emaranha electrificações de estrelas, nebulosas-gambiarras que nos atiram profundamente em gelo, glaciares-lâmpadas que agravam a escuridão existencial de Deus.  

12 comentários:

S.C. disse...

Estonteante de bonito que é!
Obrigado!!!!!!

Daniel Abrunheiro disse...

Eu é que agradeço, S.C.

M.G. disse...

Lindo como sempre. Obrigada.
Beijito.

Daniel Abrunheiro disse...

Obrigado, G.

fj disse...

que bonito é o que aqui se lê, e tudo o que escreves sobre/para os teus.

Daniel Abrunheiro disse...

E as tuas fotos, idem aspas, amigo Fernando.

Daniel Abrunheiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Daniel Abrunheiro disse...

Eu sei, Xelinha, eu sei.

Xelinha disse...

Fiquei muito emocionada e sem outras palavras que não sejam estas que se escondem no coração magoado e que não saem, mas tu conheces. Dou comigo a esticar as minhas mãos para te alcançar e proteger de todos os Invernos e de todas as angústias - deveríamos alimentar os poetas ... como as pombas ... para que, ser POETA fosse a mesma coisa que ser POMBA ... simplesmente.
Bj. XL

E Ruivo disse...

Como é que eu vim parar a esta página?! Pois não sei! Mas ainda bem que vim cá parar!

Iur disse...

Que coisa tão maravilhosa, Daniel. Merda de promontórios que te nos vão aparecendo. O Verão está sempre quase aí, companheiro.
Queres promontórios? Olhamestes:

Carrego a solidão pela boca como uma espingarda de antigamente.

Escoro-me de caligrafia

Um barco escuro sulca-me muito as águas
do coração

sou feliz ante uma laranjeira,
ando até a escrever este livro só por causa disso

Quero que te recordes sempre que ele os há, sempre, também eles rodam, os limoeiros e pardais, bem como, lá está, as três mulheres: Senhora, Leonor e Língua

Beijo
Rui

Daniel Abrunheiro disse...

Sim, Rui, sempre sim para ti.

Canzoada Assaltante