05/12/2010

Dia 7 do 12 do vinte-dez na Biblioteca Escolar da Carapinheira



CORES DE PALETA NO MENINO





Devo começar esta história – e começo – por vos dizer que, com franqueza, o Natal das lojas não me interessa muito. Talvez porque eu não seja dono de nenhuma loja. Ou talvez porque eu não seja dono do Natal. Não sei. Só sei que o Natal já não é, para mim, o que era antigamente. E o que era para mim antigamente o Natal? Eu conto.
Antigamente, o Natal vinha muito de véspera. Era como os gaiteiros. As crianças até sentiam comichões na cara por causa da expectativa da Árvore, dos presentes, dos cheiros doces que nasciam na cozinha maternal e tomavam toda a casa, todas as casas, toda a rua e a aldeia toda. Ora, foi numa dessas aldeias que se passou a história que hoje trago comigo (hoje e há muitos, muitos anos) para vos contar.

A tal aldeia tinha por nome Paleta.
As pessoas de Paleta eram idênticas a todas as outras pessoas que há, que houve e que há-de haver no e pelo Mundo.
Umas eram muito caladas, outras algazarravam-se muito, outras eram assim-assim.
Umas tinham roupas tão boas, que parecia ser domingo todos os dias para elas. Outras andavam vestidas de uma pobreza decente. Outras, ainda, não ligavam nenhuma ao que traziam trajado.
Umas tinham cão, outras tinham vacas, outras tinham papagaio. (Havia até um homem que vivia sozinho e que, por ter andado nas guerras de África, tinha um macaco, só que o macaco ao cabo de uns anos morreu e vai daí o homem solitário, para não ficar mesmo só, mandou empalhar o símio, que se chamava Tobias e gostava mais de pêssegos do que é normal.)
Umas tinham bicicleta, duas tinham motorizada, as outras andavam a pé.
E a vida também parecia andar a pé, em Paleta. Eram outros tempos, não havia pressa de morrer. Mas uma coisa era diferente, em relação ao resto do mundo todo, em Paleta.
Em Paleta, toda a gente ligava muito ao respeito pelo vizinho. (Sim, mas isso também noutros sítios acontece, não só em Paleta.)
Em Paleta, toda a gente ajudava toda a gente quando a Necessidade ou a Desgraça atacavam. (Sim, mas tal também, embora menos, em outras paragens sucede, não só em Paleta.)
Em Paleta, nas noitinhas diáfanas de Verão, os diamantes das estrelas choviam esmigalhadamente sobre os campos de cultivo. (Sim, mas é possível que outros cantos do Mundo tenham ainda também acesso ao céu, não sei se seria só em Paleta.)
Que era então diferente em Paleta? Que sinal era então tão diferente em Paleta que nenhum outro ponto do mapa repetisse?
Eram as cores dos olhos das pessoas.

As cores dos olhos das pessoas? Então as cores dos olhos das pessoas não são, verde aqui, castanho acolá, preto além, azul aquém – semelhantes por todo quanto é Mundo? Deixai-me explicar, que comecei mal.
Diferente, em Paleta, não era propriamente a cor dos olhos das pessoas.
Era a cor dos olhares.
Assim é que está bem.
As pessoas de Paleta tinham olhos de todas as mesmas cores que os olhos das outras pessoas todas de todo o Mundo e que as outras pessoas todas de todo o Mundo usam a norte do rosto. A diferença era a cor com que cada pessoa de Paleta olhava. E eu sei que, agora e a partir daqui, vou ter de vos e me explicar muito mais refinadamente o que quer isto dizer de em nenhuma outra parte do Mundo acontecer o que acontecia em Paleta – e que era cada pessoa, fosse qual fosse a cor natural dos seus olhos físicos, olhar os outros e a si mesma com uma cor que era só dela porque com ela tinha nascido, com ela morreria e por ela ia vivendo cada noite e cada dia. Claro que tenho provas do que digo, claro (e não escuro…) que sim.

O ti’ João da Fernanda, por exemplo.
Era homem de sete décadas de ferro. Perpétuo cigarrito de barbas-de-milho ao canto da boca. Pele de pergaminho que mirra. Samarra sempre vestida, mordesse o frio como inchasse o estio. Por ter andado mais de metade da vida descalço, era de pés mais cardados do que as botas que só teve quando já a velhice que subira aos ombros e descera aos joelhos. Tinha mais filhos do que ovelhas. Era de olhos esmeraldinos como incrustações de musgo fresco, mas, por ter ficado viúvo da senhora Fernanda, única mulher que ele poderia ter querido, tido e vivido, o ti’ João olhava os outros e a si mesmo com um olhar cor-de-cinza-nácar-de-concha-no-bico-do-corvo. Juro que sim: o olhar do ti’ João vinha de ser esmeralda para ser corvo.

Clarisse, de sete anos, era outra coisa, outros olhos, outra cor-de-olhar. Clarisse gostava de ir à escola, achava graça ao parentesco difícil das letras com os algarismos, das estrelas de cartolina tão bonitas e sérias nas vidraças das janelas, do perfume a madeira das carteiras tão diferente do olor frio dos bancos da capela, do calor da lenha de oliveira na salamandra da senhora Professora, do mapa-múndi todo contente de países e continentes na parede. Era uma menina de pèzitos mais leves do que as mesmas sandálias que os fitavam. Tinha mãos pequeninas e preciosas como harpas de açúcar. E tratava das galinhas sonhando-se, agora ela, Professora de meninas estouvadas. Mas o olhar de Clarisse, nascendo embora do vulgar castanho de três quartas partes dos olhos do resto do Mundo, não era nada avelã. Nada. Era cor-de-margem-de-água-violeta-dando-suave-ao-entardenoitecer. Era, era. E quem passasse por Paleta, como eu em sonhos muito passei e passo ainda, não haveria de achar meio de me contradizer. Clarisse olhava os outros e a si mesma assim: margem-de-água-violeta-dando-suave-ao-entardenoitecermente. E era feliz, Clarisse, que é um estado de alma que já não se usa muito.

Ah, mas eu sei, eu sei! Que tem isto tudo a ver com o Natal!? Já lá vamos, deixai-me só enumerar ainda, mais brevemente embora, alguns olhares-cores de Paleta. O Natal virá no fim da história, como aliás vem também no fim do ano.

Mais cores-olhares de Paleta:

a ti’ Natércia, mãe do Rui que foi para polícia em Lisboa, olhava, por causa de não sei quê, cor-de-sombra-furtiva-no-muro-do-cemitério-lobisomem;
o Man’el da Taberna aplicava a todos e a tudo um olhar cor-de-eu-é-que-sei;
a Etelvina Solteirona só não foi para freira por olhar cor-de-homens-que-é-feito-deles-?;
o Rufinozito do senhor Major, porque tinha tostões para gastar em bolos sempre que queria, era de olhar cor-de-cabrito-aos-pinotes-nos-móveis-da-avó;
já a Eurídice do Zé Ulisses era utente de um olhar cor-de-jóia-de-imitação-sobre-veludo-de-chita;
e o senhor padre Ismael, cuja fadiga asmática tornava rancoroso e opresso e opressor, olhava, apesar de tudo, nas horas boas, cor-de-Cristo-dormindo-ouros-de-palmeira-em-areia.

Agora, agora que preciso de terminar este conto, vou dizer que tem o Natal usa ver com tudo isto e com esta Paleta toda. Não tem a ver com o tal Natal das lojas. Tem a ver com isto, quereis saber?

Na capela de Paleta, o Presépio mora todo o ano. Não é que seja Natal todos os dias. No resto do Mundo, às vezes nem no Natal é Natal – e Paleta, por ser de gente humana como humana, para o bem e para o mal, é a gente de toda a parte e toda a arte, não é nisso diferente. Mas é diferente naquilo que vos contei dos olhares-cores.

Bem, na capela de Paleta o Presépio atravessa sem ser desmontado os dias, os anos, as décadas e o que veio, vem e há-de vir. Tem os Reis Magos, os Anjos, os ternos animais maternais e vigilantes, o S. José e a Virgem Senhora Mãe. Claro que tem. É um presépio como os outros. Só o Menino é diferente. Só podia ser. O Menino Jesus de Paleta é diferente porque acorda pintado de cores como nenhumas outras existem nem no orbe terrestre nem na armilar esfera celeste.

O Menino Jesus de Paleta, quando o sacristão Jeremias (olhar cor-de-aceite-surripiado-em-hora-fria-e-escura-de-Fevereiro) encerra o portal da capela, é incolor. Parece feito de terracota de água, por assim dizer. Mas é então que se dá a branda maravilha.

Adormecendo, o Menino sonha. E sonhando, olha-se a Si mesmo pulsando medusas-íris, revérberos, coruscantes emanações, tonalidades de meio mar, inclinações de pinheiro ao vento, cabeleiras de trigo melhoradas pelo Sol e chapas de prata reveladas pela Lua fotógrafa. E o Menino pergunta-se, no sonho que será tão mais divino de quão mor humanidade proceder, que suave fascínio é aquele que o toma, leva e enleva. Abrindo os olhos bons sem de todo despertar, compreende então que está a ser olhado pelo ti’ João, pela Clarisse, pelas ovelhas mansas, pelas estouvadas galinhas, pelos cães que a vida vivem como nós, por Eurídice, pela senhora Fernanda (olhar cor-de-ter-sido-mas-ido), pelo senhor Major até.

E então Ele compreende que tintas são as da fundamental nudez de nascer todos os dias. E que o Mundo, como o Natal, é só da cor com que cada um olha os outros e a si mesmo.



Daniel Abrunheiro

Coimbra, 22 de Novembro de 2010

Sem comentários:

Canzoada Assaltante