18/07/2009

UM POUCO ANTES DE AMANHÃ (18)

18

Pombal, tarde e entardenoitecer de 13 de Julho de 2009

Numa simples segunda-feira, a percepção mentaliza o corpo, perífrases da atenção (o corpo, a percepção).
Vi o cerimonial do casamento da Besta Gorda Goering (Hitler, padrinho) e do baptizado de um dos filhos disso resultante.
Vi um tanque norte-americano vítima de uma mina-de-terra japonesa em Okinawa.
Continuei a elaborar um poema em prosa sobre os mortos, texto que antecedi de uma epígrafe de Leonardo Sciascia.
Terminei a leitura de um livro do poeta nacionalista estanovista Rodrigo Emílio (1944-2004), Poemas d'Amor e Morte com Palavras da Infância.
Ontem, de uma assentada, leitura de Rente ao Dizer, de Eugénio (ele diria Eu, Génio...) de Andrade.
Na adolescência, foi-me um poeta importante.
Hoje - decerto por defeito meu, vá lá - é uma poesia que deixou de me fazer falta. problema meu, claro - e desimportante.
As escolhas progridem-nos.
Ritsos, Guillén, Cavafy, Lorca - nomes feitos de e da Arte Poética, que não permitirei esmaguem, por gigantes, outras descobertas.
Rente ao Dizer (1ª edição, Março de 1992) termina com uma prosa de E. de A. (Andrade é pseudónimo deveras bem escolhido para um portuense adoptivo, ah ah...) sobre a vida (e a morte) de um gato persa que teve: o texto é bonito e muito limpo, à imagem da poesia deste vaidoso senhor já falecido.
Como tenho duas gatas, percebi muito bem aquilo com o Micky dele.
Mas é poesia que deixou - não de me comover (ainda comove, aqui e ali), mas de me mover.
Para mais, irritava-me o beicinho que fazia todos os anos por causa de lhe não darem o Nobel.
Ele, o Torga (e o Lob' Antunes, agora) - que triste farsa, a da feira do "Nobel" das vaidades.
Quando, em 1996, a Academia Sueca premiou a poeta polaca Wislawa Szymborska, o Andrade ficou fula e disse qualquer coisa deste género:

"Não a conheço nem quero conhecê-la..."

Coitado.
Morreu sem a gloríola nobélica.
Que a terra lhe seja levezinha, como a poesia lhe foi, enfim.
Acontece, por azar, que a poesia da polaca é magnífica, azar de cá e vantagem de lá, como gelatinaria o Vasco Santana d'A Canção de Lisboa...

Tenho pensado bem.
(Ou tenho-me sentido bem com o que posso pensar.)
Todo o dia filtro palavras, reorganizo cômputos, esclareço imagens, bebo fundos de chávenas de café feito de fresco, tento a fixação de bases regulamentares para a minha vida.
Não é sobre brasas que o faço.
Não pode ser sobre brasas, como estes anos todos tem sido, raios me partam quem fui.
Muita gente, quiçá por razões de higiene, considera irrelevantes as irrelevâncias.
Penso que fazem bem.
Penso que "bem" é o que cada um quer decorrente do que pode.
Por mim, não posso senão revelar o que relevo.
Se se bocejou e se a brisa toca os olhos que bocejaram: acontece a toda a gente, mas nem toda decide coleccionar essa memória húmida, esse beijo frio na atenção - este exemplo é talvez bom para a enumeração seguinte:

ENUMERAÇÃO SEGUINTE
(RELAÇÃO, REVELAÇÃO, RELEVÂNCIA)

O couro frio aos pés das senhoras (com coruscação metálica ou sem);
os lugares-comuns usados para consubstanciação da ausência de reflexão;
o aroma dos livros, que fixa o tempo e o lugar do acto antes da leitura;
a textura do corpo (avaliada pelo corpo, pois tudo é corpo) nos primeiros instantes pós-banho;
num jardim, conviver com a roda-menina-exposta dos paradoxos do Tempo;
ao longo de uma rua, os nomes-placas (advogados, terapeutas, analistas, floristas);
o fulgor de um cavalo livre num campo visto de comboio em marcha;
as famílias semânticas interoperáveis: música, aves, ventos, máquinas, marés.

2 comentários:

yodleri disse...

Eu continuo a gostar do Andrade; tenho grandes dúvidas quanto à atribuição do prémio Nobel, as quais foram reforçadas quando um sujeito chamado Begin, (ministro israelita nascido em qualquer lado) após uma carreira de terrorismo puro e hediondo, como aliás, é todo o terrorismo, recebeu o prémio nobel da paz.
Conheces Rainer Kunze? Talvez, sem radicalismos ideológicos, te possa agradar.
É pena que haja sempre alguem a revestir de fatos os poetas que vão nús, mas enfim.
Cumps

Daniel Abrunheiro disse...

Yod, a minha palavra não é lei. O Eugénio de A. tem obra boa, atenção. A figurinha é que me desagrada, talvez porque vá envelhecendo (eu, que de envelhecer já a figurinha se livrou). O Nobel, de facto, já premiou muita merda humana, para usar a palavra justa. O Kissinger, por exemplo. Na Literatura, há muito caso de mal entregue/empregue o galardão. E injustiças de não atribuição, de que Borges é o exemplo maior (isto apesar de o sacana do cego ter visitado e beijado o chão do Chile aos pés do cabrão do Pinochet). Mas olha; para mim, bem bem bem bem maior e mais importante do que torgas e eugénios é o António Osório, ainda vivo felizmente e infelizmente quase de todo ignorado pela "crítica" badalhoca vende-cus que temos...

Canzoada Assaltante