26/07/2009

Da Pessoa Plena de Imagens - I

Pombal,
entardenoitecer e noite de 24 (I a IV)
e manhã de 25 de Julho de 2009 (V a X)

I. DIGO A PESSOA AO ENCONTRO

Digo a pessoa profunda que à superfície ocorre em cada gesto.
O Verão escoa-se pela luz mesma de que se cria e dissipa.
O Estio é alto, é de bandeiras vegetais.
Por um momento, não conta nem conto que no Outono eu seja um pouco mais feliz talvez, menos mortal um pouco.
Eu ando agora pleno de imagens, como a água que passa com o céu na boca.
Noite adentro, ouço as árvores que despertam, que se maquilham de Lua, que apanham do chão a própria sombra e a vestem em túnica lunar, maravilhosa.
E a minha casa é de ruas de cidade feita, que à noite passo visitando as montras, as alas de adormecidas pombas (como o pequeno comércio adormecidas), os fontanários suspensos, as mínimas babilónias dos adormecidos e a agência do Banco de Portugal.
A rapariga que é uma flor presente no ar da cidade, deste lado do papel: f(r)onte ambulatória, graça viva que enternece à passagem os aposentados da porta da barbearia.
Fervilhar de vida em palavra, como o jovem José Leite de Vasconcellos (entre e durante Ucanha, concelho de Tarouca, 1858, e Lisboa, 1941) das fracas mas gentis Balladas do Occidente (1885), assim dele sabendo (vendo-o, lendo-o) no dia 29 de Setembro de 1878 em Castro Daire (poema Adeus), no dia 2 de Dezembro de 1879 no Porto (soneto Scienza Nuova) e no dia 23 de Junho de 1881 nas Caldas das Taipas (À Vista do Campo).
Como tanto jovem devindo defunto, epigráfico para um outro que jovem vai deixando de ser, pensei.
Mas pensei sem fazer doer a vida dos outros.
Quero alcançar um degrau que aceite o assentamento comendo um pêssego ao lusco-fusco de um dia saudável e fatigado.
Digo esse degrau, esse homem sentado nele de fruto entre mão e boca.
Agora um menino viaja na minha cabeça, ei-lo que guarda os nomes das ruas, os das pessoas mais antigas do lugar (estesia puríssima, epigrafia puríssima), as cores dos cães, a posição dos vasos nas janelas, o ouro estendido do milho na eira do senhor Arménio Canário, o Lagar Velho, a torrente de pedras em lenta descida rumo à Quinta dos Canaviais.
Eu sou esse infante e outro vendo-o (lendo-o, escrevendo-o), escrito serei no futuro por ele.
Sou a viagem, também.
Muitos anos, outras cidades no papel, conheço pessoas, algumas das quais são mulheres.
Nós somos a humanidade disponível, a humanidade possível través Canaviais.
Merecemos a paz, merecemos viver entre árvores.
À semelhança do amor, a decência da nossa vida ilumina jardins, suspende fontanários, pátios ilumina, estações de correios, cafés, litorais, miradouros.
Não cederemos mais à pornografia dos onzeneiros, dos falsos diplomatas da Fé, dos algozes da Finança, dos imitadores do Fado.
Cidade, minha noite, minha casa, aldeia nossa, dele.
Tudo é nosso, a começar pela morte limpa.
Chama-se decência, a paz.
Pareço envelhecer bem: troco ilusões por minutos à beira de um rio verbal, súmula de ínsuas, açucenas, cegarregas e cimalhas, a pessoa colectiva do idioma, os relâmpagos de música que fustigam com tanta doçura, os recados que é preciso aviar (ir aos ovos à senhora Teresa, pagar ao senhor Rodrigues alfaiate, dizer à senhora Fatinha que a filha telefona hoje sendo as nove da noite que faça favor de vir cá a casa atender a chamada), esquecer a ausência dos pais dos amigos em parte certa (o pai do João Portulez está para morrer em breve) entre os brancos muros ao alto da colina última a oriente da aldeia, murmurar carinhos humanos às gatas, atender os deuses egípcios à luz do candeeiro da sala portuguesa.
O que dissemos - é a nossa etnografia, José L. de V..
Os jogos verbais com que matizamos as cores que os outros trazem agarradas ao corpo, essas frases tão importantes que, afinal, nos sinalizam entre duas datas, sob um mármore.
Que importa se amo sem importância quanto vivo?
Já passou a dos Canaviais, cheguei à cidade marítima, comprei fruta e brinquedos na Praça, fui ver os barcos, conhece os perfis de quem passava caminho de suas vidas como a minha passantes.
Já adquiri amigos, que reconhece nas afinitudes colossais do pormenor: as bandas dos 70, as relações amoradeiras, os pais deles, os pátios olímpicos que cultivaram quando eu passava ao Lagar Velho junto à eira do senhor Arménio Canário ou à Casadinha ou à Costa ou ao Vale do Forno.
Se, por exemplo, escreve um poema, faço-o por necessidade testamentária.
Partilha a brevidade vital a que nem os reis logram furtar-se - e conheço que é eterno o teor alaranjado do crepúsculo que me antecedeu como o do que me sucederá a ele.
Escrevo ao encontro disso, dele.

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Canzoada Assaltante