03/05/2008

Não Invento Tudo

na revista RL, do Região de Leiria, crónica nº 1 de Café Paraíso


Num campo muito verde, algures no mundo, uma papoila lacra uma espécie de canto. É uma única papoila, incomparável e incomparada. Se as flores, como nós, forem dadas à lucidez da solidão, aquela papoila é o mais solitário ser do mundo.
Numa praia instaurada pelo vento, que uma nau de pedra assinala e vigia, há uma gaivota, uma única gaivota. Vejo-a daqui, a tantas milhas marítimas de distância. É uma ave de perfeito busto, suave pena dura e olhos totalizadores de céu e terra.
Numa estação ferroviária abandonada, a erva trepa pelas paredes, as janelas percutem-se a si mesmas no vazio. Um parado relógio de parede marca a hora a que a eternidade começou. Um único relógio para uma única eternidade.
No parque de uma cidade que já não conheço, abandonaram uma criança há muitos anos, mais de oitenta. A criança fez-se tudo o que pode acontecer: menina, rapariga, mulher, velha. Uma criança solitária como uma papoila. Uma só criança só.
Num café de província que nem as moscas visitam, esqueceram-se desta cliente. É uma mulher antiga como uma fonte. Poderia chamar-se Mãe-d’Água. É a única cliente do sítio. Mas não há quem lhe sirva um chá. O café é em frente a certa estação ferroviária.
À beira do rio, onde um fantasma de ponte de pau continua a traçar sombra à flor das águas, há um peixe verde que olha para o céu. Está fora de água. Tenta respirar. Ninguém devolverá este peixe ao livre curso fluvial. Ninguém.
Estou aqui sentado há muitos anos. Escrevo dentro do silêncio. Não preciso de música. Não preciso de nada. Se me levanto, é para ir ver o que chove. Volto e sento-me. Sento-me aqui. Sinto-me aqui. Recordo coisas. Coisas simples como a vida, coisas simples como a morte. Sim, recordo. Talvez invente o que recordo. Enumero lances, algumas palavras definitivas, saias de mulheres colorindo ruas a que não voltarei e onde provavelmente passei nunca, comboios atirados aos longes de uma infância mais do que eles longínqua, tão longínqua que nem pode ter sido a minha, não sei, sei poucas coisas, tenho de inventar a maior parte das poucas coisas que sei.
Mas uma há que não invento. Uma há que não minto com a verosimilhança pateta dos poetas. Que coisa é essa?
É uma papoila. É uma papoila que é uma gaivota. É uma gaivota que voa a eternidade. É uma eternidade de menina sozinha num parque público sem público. É uma menina que é uma mulher, tudo o que ela queria era um chá, um simples chá simples como a vida. É um peixe à sombra de uma ponte que não há, num rio que não corre.
É a minha Mãe.

7 comentários:

Manuel da Mata disse...

"É uma ave de perfeito busto, suave pena dura e olhos totalizadores de céu e terra."
Sublime.
Manuel

Unknown disse...

De um só trago: não queremos parar e, mesmo no fim, perpetua-se e mantem-nos uma estranha inquietação, talvez avidez. Mais um maravilhoso momento.
Um abraço
João Pedro

Paula Sofia Luz disse...

falta dizeres que milhares de leitores têm o privilégio de ler esta crónica, n'o café paraíso da RL. bj

Anónimo disse...

Imperativa e imperatriz a humana intimidade deste depoimento. Algumas palavras definitivas, também nele, sim. Por ser a mãe. A terra. Ímpar e infinita. Que lho devemos. Por mais que morramos. Todos. Nós tanto como ela.

Paula Sofia Luz disse...

E podes dizer, já agora, onde é que publicaste isto...?

LM,paris disse...

cher daniel,
uma mulher antiga como uma fonte, une femme ancienne, comme une fontaine. Sublime, oui, daniel, je reviens et je sais que vous écrivez à l'intérieur du silence.j'aimerais pouvoir vous le dire , le silence là-bas, loin, en Pologne, un des camps. un jour j'y ai marché, quatre heures, en silence, il est entrée en moi, par la peau, par les yeux, il était inscrit dans tous les murs, roulé, caché sous toutes les pierres. depuis ce jour-là, le silence est devenu dense. votre texte sur votre mère, linda , est beau, vous lui ressemblez beaucoup. bonne nuit, um beijinho de Paris LM

Anónimo disse...

maravilhosa homenagem a uma bela mãe, daniel. as palavras são de uma ternura inigualável. parabéns!

Canzoada Assaltante