22/05/2008

A partir desta semana, crónicas passam a 4

1. Rosário Breve - 53
CRÓNICA ALEXANDRINA

O senhor Alexandrino Nóbrega anda um bocado chateado com a Pátria. Ferroviário (mal) reformado, enfurece-se sozinho ao balcão do café que abre às seis da manhã. Amargura-o muito ter de fumar de novo, como no princípio da mocidade, mata-ratos de enrolar, dada a sanha preçária antitabágica em curso. O senhor Alexandrino Nóbrega tem muitas saudades do tempo em que, nas cozinhas, havia uma gaveta só para o bacalhau, esse peixe inventado pelos Portugueses que, como os Portugueses, corre sério risco de extinção. Antigo sindicalista vermelho, o senhor Alexandrino Nóbrega já por mais de duas vezes se apanhou a si mesmo elogiando o Salazar. Eu tenho muita pena do senhor Alexandrino Nóbrega porque, um dia destes, eu vou ser e estar igualzinho a ele.
Já ando, aliás, a aprender a enrolar mata-ratos, mas fico danado quando, no quiosque, me vendem o livrinho das mortalhas com um pisca-olhos de comparsa de ganzas. E logo a mim, que só me drogo com bagaço. Também ando um bocado chateado com a Pátria, sobretudo por causa da mania que a Pátria tem de premiar a roubalheira e de punir a honradez. Vale-me que gosto muito mais de bacalhau que do Salazar, embora fisicamente tão parecidos.
Amanhã, às seis e picos da manhã, vou estar ao balcão do café ao lado do senhor Alexandrino Nóbrega. Vamos ser os dois contra o resto da Pátria. Até às sete, dizemos mal da Pátria. Depois das sete, dizemos bem do Scolari e mal do Pinto da Costa. E depois gastamos o resto da manhã a garantir um ao outro que desta é que vai ser: sim, que desta é que a Pátria, a bem da Nação, vai ganhar o Euro. Isto se lá fora não fizerem à Pátria a roubalheira que a Pátria faz aos Portugueses, a mim e ao senhor Alexandrino Nóbrega.
Vai ser uma ganza, meu, tás-a-ver, Alexandrino, alto flash, ya.
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2. Crónica Mundial - 4
(www.jornaldocentro.pt)

VISEU NÃO É NA GRÉCIA

Peço-vos perdão, mas não ando especialmente entusiasmado com o estágio da Selecção em Viseu. Ainda se o guarda-redes fosse o Vítor Damas… Agora, com estes rapazes que perderam duas vezes contra si mesmos através dos gregos, não. Acho-lhes graça, claro, hoje em dia eles até já nem falam como os polícias de antigamente. Digo-o assim: não me sinto representado por eles. É caturrice minha, eu sei, mas não, não me sinto representado por eles. Nem em Viseu, agora, nem na Suíça/Áustria. Ainda se o centro-campista fosse o Coluna…
Preocupa-me mais a escolaridade do que a “scolaridade”. Peço-vos perdão por isso.
Peço-vos perdão porque vós, como eu, não fostes convocados para nada. Nem para paraísos de hotel, nem para gloríolas pseudopátrias, nem para saúde-educação-justiça gratuitas. Eu não fui. Vós também o não fostes. Ainda se, para a linha mais avançada, tivessem convocado o Jordão e o Eusébio…
Moro como vós em Viseu. Habito, vivo, respiro, trabalho por estas viriáticas fragas. Sei os nomes dos cafés. Sei os nomes das ruas. Dou e recebo os bons-dias nos sítios costumeiros da minha rotina. Falo (e escrevo) com toda a minha escolaridade. Sou talvez feliz, entre o Largo do Pintor Gata e o Largo do Major Teles. Mas não vou à bola com toda a bola que me queiram fazer engolir em vez de pão (olha o preço do pão), em vez de arroz (olha o preço do arroz), em vez de gasóleo (olha o preço do gasóleo).
Sou, sim, apenas um dos tristes que não aceitam que lhes/nos chamem nem parvos nem alegres. Ainda se me chamassem Carlos Lopes, que nunca jogou à bola mas foi o maior desportista português de sempre e até é de Vildemoinhos…
Agora, ver-me grego é que não.
Não.
Nunca.
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Contra os Canhões - 8

(www.regiaodeleiria.pt)
A TAÇA É MINHA

Esta semana, fui, por assim dizer, o Rei Leão de uma casa sem filhos: como benfiquista, ganhei dois-zero ao Porto, através do Sporting, na final da Taça de Portugal.
Quero com isto dizer que, durante 120 minutos, não me inquietei com o preço abusivo do arroz, nem o com o preço especulativo do gasóleo, nem com os “romances” do Miguel Paulo José Coelho Sousa Tavares Rodrigues dos Santos. Sim: durante 120 minutos, ganhei ao Porto e fui feliz num café chamado Paris.
Quarentão, cervejómano, inchado, rubicundo e grosso, senti-me felicíssimo contra o resto do mundo. O resto do mundo, isto é: o Porto.
Quando, há muitos muitos muitos muitos anos, em Leiria, ia almoçar ao Monte Carlo, do falecido senhor Salvador, eu era mais sportinguista do que um lagarto carimbado a sol num muro de cal. Então, eu tinha dinheiro para a refeição, eu mandava bocas, eu já era feliz na altura. Feliz por fora, também vo-lo digo – mas, por dentro, benfiquista como meu santo Pai, o que me garantia, já então, como hoje ainda, toda a infelicidadezita portátil dos tristes que nunca são campeões de tribunal nem amantes de alternadeiras.
O meu onde de hoje já não se chama Leiria. Fiz duas filhas aí perto, depois vim-me embora para outro onde, sujeito a outro quando. Mas também vos digo, deveras e de facto, que nunca parti, senhoras, senhores, da felicidade: esta semana, ganhei dois-zero ao Porto, ao resto do mundo, ao arroz carolino da Carolina e ao gasóleo.
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Bairro Nosso - 1


NOSSA PÁTRIA MINHA

Sou um rapaz da área norte de Coimbra. Cresci na zona industrial da Pedrulha (do Campo, não confundir com a Pedrulha do Monte, na Mealhada). A minha Pedrulha é agora apenas zona, dada a devastação empresarial sofrida pela economia coimbrã. Caso atrás de caso, tudo abre falência (verdadeira ou manhosa), tudo fecha as portas. Operários às centenas (muitos com mais de 30 anos de casa) vêem-se atirados sem rede ao frio horror do desemprego.
Quando lá vou ver a minha Mãe, choca-me sempre a galeria dos edifícios fabris em ruínas. Sei perfeitamente que por trás de tudo está a ganância empreiteira das imobiliárias, que, em conluio com “democracia” autárquica, nunca gostaram de pessoas, só de fregueses tê-zero que lhes comprem as gaiolas de betão nas estéreis e dormitórias urbanizações da modernidade. Logo que posso, venho-me embora dali, para desgosto da minha Mãe, que preferia que eu tivesse 12 e não 44 anos, de modo a viver com ela na casa de operário que o meu saudoso Pai sustentou, febril e fabrilmente, com mais de meio século de trabalho na pintura cerâmica.
Se vos pareço amargo, não duvideis da parecença: ando amargo com isto a que, à falta de melhor palavra, chamamos Pátria. Suponho que a vossa Pátria é a mesma que a minha, mas não posso garanti-lo. Porquê? Porque a minha Pátria é a da selvajaria “liberal” do preço dos combustíveis, a do desemprego multitudinário, a da cavalar ignorância linguística, a da parasitária cáfila de assessores, a da arrogância ministerial, a das multimilionárias negociatas com submarinos que nos levem ao fundo e com comboios que em alta velocidade nos levem a nenhures, a de empresários desonestos que vêem na honradez o oitavo pecado mortal da alma.
Lamento, mas a minha Pátria não é a que o Scolari nos mandou pendurar das janelas e das varandas. A minha Pátria, de facto e deveras, é a dos meus 12 anos, quando as fábricas trabalhavam com gente dentro.
Garanto-vos que é triste, ter uma Pátria do século passado.

4 comentários:

Paula Sofia Luz disse...

E uma vez por mês a cinco...importas-te de rectificar?...humfp

Daniel Abrunheiro disse...

e mais uma por mês, de facto, que eu já estou com 44 anos e não há milagres.

Anónimo disse...

Sr. Daniel sinto-me solidaria consigo, e com os seus valores
As Suas Cronicas são Maravilhosas

Anónimo disse...

Já lá tá no Porco «Viseu não é na Grécia». Aquilo não há-de morrer, fónix. Enquanto houver textos destes, não há-de, sou eu que o digo.
Moi-Eu

Canzoada Assaltante