21/07/2005

O Essencial sobre Gatos

Liberdade não conheço outra senão a liberdade de estar preso a alguém
Luis Cernuda
Não podia deixar de ser: no mesmo dia em que voltei à cidade, telefonei-lhe. Não, minto. Apareci-lhe à frente. Sem aviso prévio, como se disparasse primeiro para perguntar depois. Olhou-me com os olhos de antigamente. Olhos bons, macerados, nocturnos. Fomos comer uma sopa a um bar de clientes rápidos e croquetes funcionários. A consciência de termos muito para dizer fez-nos falar pouco. A consciência levou-nos pela mão, como a criancinhas. Deixámo-nos levar. As dores da mente arranjam maneira de estar na cabeça sem desarranjarem o sótão todo. É isto a experiência? É isto a experiência. Ligámos pouco à sopa. Era de nabiças, comemo-la. Fazia um tempo neutro, sem sol, sem chuva, sem frio, sem calor. Uma meteorologia igual a nós, se tomados cada um por si. Juntos, porém, o clima mudava. O gato punha-se a ronronar nas entranhas, morto por dar o salto. Fomos tomar o café a outro bar. A hora de almoço tinha passado. Sentámo-nos entre clientes sedentários. Bebi um digestivo. Depois de ela partir, bebi outro. A televisão do bar mostrava-me um programa inútil, dessas coisas vespertinas para lar de idosos. Bocejei sem ânsias: a experiência. No outro dia não podia ser. Passou o fim-de-semana, almoçámos sopa e croquetes na terça-feira. Na quarta, choveu. Ela ia ter férias. Eu disse-lhe: “Engordaste bem. Estás mais bonita.” Ela respondeu: “Obrigada.” Acendi-lhe o cigarro, acendi o meu, pensei nas coisas minuciosas que se atiram da janela pelos gestos mais simples: acender-lhe o cigarro, queimar-lhe a roupa, estar nela depois de apagar ambos os cigarros com uma pressazinha controlada de gajo que vai refazer um amor adiado há tempo de mais. Ela, que percebe sempre o que não digo, sorriu: “Tem juízo, não é preciso irmos para a cama. O essencial está feito.” O essencial. Um gajo passa de existencialista a essencialista num ápice de anos. Na abstinência, os sentidos afinam-se como lâminas de barbeiro. De talhante, melhor. Com a relativa prosperidade dos quarenta e picos anos, pode-se alugar uma puta mais ou menos fina, vazando nela os óleos nocivos do aparelho sentimental. Isto é cru? Mas tudo é cru. Ainda bem, assim ninguém se engana nem deixa que lho façam. Depois vieram dias em que não vinha. Ou porque o marido vinha buscá-la ao trabalho ou por ter ela de ir buscar a irmã ou por coisa assim. Habituei-me ao segundo bar. A empregada automática trazia-me o digestivo, mesmo que eu não tivesse nada que digerir. Habituei-me ao programa da tarde, que olhava sem ver. Passei a rodar o copo na mão, vendo sem olhar as estrias do tempo na pele do polegar, na pele da almofada que prepara o indicador: mão de gato velho que roeu as unhas todas menos as da alma. Às vezes, tinha uma tristeza. Uma nuvem subia do estômago, ensombrava o planalto dos ombros, fazia-me fechar uma janela qualquer dentro do futuro. Não me fazia mal de mais porque eu não deixava. Reagia sem me mover do sítio, como um soldado emboscado que não atira para que o não topem. Aguentava a dor, pedia outro café, quando o óbvio era outro digestivo. Pensava nela. Outras vezes, pensava por ela. Isso era bom. Quando pensava por ela, percebia a maneira que tinha de continuar a amar-me, essa maneira impermeável à chuva e à desconfiança dos outros, esse modo invencível que usava para me fazer dela à maneira dela. Outras vezes, sentia com a nitidez de um relâmpago de verão que ela estava a pensar em mim. Eu deixava-me nadar no plasma da mente dela, outra vez ágil e outra vez jovem, como quando a conheci e fizemos amor numa cama emprestada sem perguntas. Fizemos o amor como quem faz uma caixa de cartão, um plano de viagem à Argentina, a escolha de um livro pelo Natal. O amor ficou feito desde então, é isso que tenho estado a contar com tudo isto de letras, papel numerado, capa a cores e resumo apelativo na contracapa. Percebo que isto é macilento. O meu remédio foi juntar-me às coisas macilentas. Não pude vencê-las, não quis vencê-las o suficiente. Fiquei velho. Há uma parte jovem: o gato. Não salta, mas finge que poderia saltar. Vi-a depois mais algumas vezes. Andava preocupada com o filho, que parecia não se preocupar com as coisas do costume. Soube depois que o filho alinhou como se diz que deve ser: acabou o curso, casou com uma mulher diplomada, deu dois netos à mãe. Não é importante de mais, isto. Importante é guardá-la como a vejo, agora que regresso à cidade e lhe apareço à frente como se disparasse. O meu olhar é o mesmo de sempre, sempre que a vejo: olhar de entendedor entendido. Gosto de como se deixou engordar. Ficou mais bonita sem parecer pesar mais. Estou a vê-la. Ela sopra o calor da colher de sopa, ri-se da minha piada do mocho e do caracol. Um caracol e um mocho conversam, etc. Eu e ela conversamos. Uns anos antes disto de estarmos a comer sopa e a conversar, estamos em casa de um amigo comum. O amigo desaparece, ficamos mais sós que de costume, escolhemos um dos quartos. É uma divisão bonita. Tem cortinas de cor suave, a luz entra verde por causa de ter atravessado a árvore do jardim. Estamos ali aos beijos porque as palavras se esgotaram de repente. Não temos outro sítio para onde ir senão para dentro do outro. Quando lá chegamos, descobrimos que já lá estávamos há muito tempo. Esse tempo da mente que nenhuma relojoaria pode fixar. Encontramo-nos a nós próprios e fingimo-nos surpreendidos. Cada corpo empurra-se para se completar na extremidade do empurrão, entre licores, pêlos, fios de suor que se esmagam como chuva em pára-brisas. É uma ginástica suicida: morremos no extremo. Volto à sopa, ela levanta-se da cama, está a olhar para mim do outro lado da margem da mesa, ri-se da resposta que o caracol deu ao mocho, sinto um pequeno frio que ela aconchega com brandura: “Também me lembro disso. Foi bom.” Isto não é importante. Se o for, é só agora, agora que o conto a nós com o vosso testemunho silencioso e grave. Histórias de gente crescida que cresceu até decrescer, gente que começa a viver de cor. Às vezes, estou na cama e conto-me de outra maneira a mesma história. Estou a pensar nela e adormeço, facto que ela aproveita para se esgueirar para dentro de mim, como daquela vez que já disse, quando a luz chegava verde ao quarto do amigo discreto que morava junto a uma árvore. Ela põe-se toda a sonhar dentro de mim, eu vejo o peito dela a arfar os meus soluços, estendo uma mão que é a dela, as estrias do tempo no polegar. Ela sempre teve dentes luminosos. Uma boca maravilhosa de anúncio publicitário. Rio-me com essa boca do que me ouço dizer sobre mochos, caracóis, ternas obscenidades de ejaculador sincero. Acordo mal. Preso no meu quarto de fulano que envelhece só e sem pachorra para o futuro, cortinas suaves, garagem para dois carros. Resisto. Sei resistir. A tristeza não vale mais que o contentor onde mora. Resisto. Acendo um cigarro para ter a certeza de que ainda há coisas que ardem. A coisa vai passando. A arca do peito descomprime-se. Respiro melhor, já não estou a sonhar, ninguém está a pensar por mim, tenho a certeza, tenho a certeza, tenho. No dia em que regresso à cidade, apareço-lhe de repente. É uma suave epifania de antigo amante, fiel na ausência, perdoado por nenhuma culpa e muitas mulheres tidas e esquecidas, deixadas ao vento como papéis, cinzas, tristuras, secos orgasmos de pubs de engate. Ela gosta de me ver, vamos comer sopa a um bar rápido de pessoas-croquetes. Conversamos bem, presas de um amor inoxidável. Somos a cidadela. Somos os inexpugnáveis, um tipo e uma tipa de quarenta e tal anos que gostam um do outro sem passar recibo. Quando o café chega à mesa, ela diz: “Não te preocupes. Somos iguais.” Não há nada a responder a isto: fui eu que disse. A pele dela cheira a mim. Mudamos de posição, continuamos os mesmos no mesmo sítio: dentro. Ela levanta o rosto para o tecto, fecha os olhos para adiar o inadiável, eu viro a cabeça para a parede e dou de caras, a meio da aflição de me despenhar, com o poster do Jim Morrison a rir-se como um perdido. Perdemo-nos ao mesmo tempo, descolamo-nos, ela acende-me o cigarro, acende o dela, deita-se de costas ao meu lado, põe o cinzeiro do nosso amigo em cima do meu peito. Somos de novo novos. O nosso gato, saciado, lambe o próprio leite. As palavras ainda não voltaram. É já a experiência da eternidade. Conto isto não porque seja importante, mas porque é, apenas porque é, vai ser sempre. Resisto, agora. O meu cigarro apaga-se, acordei mal, estou num quarto de homem só que de repente me acode ser eu. O filho dela passa na rua. Vai de cachecol roxo, pasta e nariz de mediador de seguros, andar sincopado, altivo. Eu fico onde estou: reflectido na montra da livraria, olhando-me olhando os livros expostos, indeciso sobre se sim ou não entro, sobre se sim ou não compro este livro e lhe rasgo a última página, de modo a que tudo isto, como não podia deixar de ser, tenha apenas princípio.
Leiria, 14 de Dezembro de 2001
(Este texto faz parte de 'O Preço da Chuva', coisa a publicar em breve, espero)

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