07/06/2005

Carta de Janeiro Áspero a Ninguém

Sou da terra de ninguém.
Conheço pouco do mundo.
Falo pouco, também.
Tenho alguns versos, uma rosa, nenhum dinheiro.

Vejo que não és.
Sei sempre onde não estás.
Uma árvore é um pulmão exposto.
Como um amor ferido.

Respiro como se praticasse uma língua estrangeira.
Percebes?
Não preciso de ouvir.
Não preciso de saber.

Tempos houve em que nem tudo foi assim.
Outros tempos.
Difíceis, eles também.
Mas que sei eu?

Bebo o ar da terra.
Sangro palavras escuras.
O silêncio aos ombros como uma enxada.
De longe vem a dor.

De mais perto a alegria.
Conheço-a: ouvi falar dela.
Não sei para onde foi.
Sei tão poucas coisas.

Agora é hoje.
Tenho uma colecção completa de hojes.
Respiro.
Calma.

Um nervo de ferro.
Uma palheta de ouro.
Uma boca de gato.
Um sapato perdido.

Colecciono idas.
Alimento a sombra.
Trago o sol.
Sou da terra da água.

Se pudesse, seria um peixe.
Não sou.
Nunca mais serei animal.
Só quando morrer.

Agora a luz.
A maçã de ouro.
O cavalo de sangue.
A sombra do tubarão.

Desapareço sem tremer.
Nunca mais hei-de tremer.
Conheço a saúde do fruto.
Mordo-a.

Numa casa antiga, uma flor nova.
Urina de cachorro velho.
Sombra pisada de homem.
Avó de renda à janela.

A cidade estiola.
O Verão cega.
Brasas, açucenas, cigarras.
Cigarros.

A minha vida.
A minha vida é de ninguém.
Não olhes para mim.
Não estou.

Mas chama-me.

Janeiro Áspero

Canzoada Assaltante