10/08/2022

H. EM BUSCA DELFIM - 46 a 53

© Edward Hopper



46

 

“Comecei a viver com a luz, e não contra ela (…)” – frase do grande mexicano Carlos Fuentes in Cristóvão Nonato.

Julgo compreender tais palavras. Não retratam (nem retractam) o meu caso – mas julgo-as possíveis, julgo compreendê-las. Julgo aliás muita coisa – e muito erro, que me não farto.

A tarde acaba-se-me. Desconheço que tipo de noite aí vem. Talvez uma pastilha me ajude a dormir até às sete horas. Pego às oito, saio às dezasseis. Saído do emprego, vou-me a conversar um pouco com o doutor J.S., rapaz prestabilíssimo que me tem facilitado burocracias várias.

 

47

 

Trabalhei o turno 08-16h00m, dia até ora sem mor relevo. Algo fatigado: muita andarilhança, muito estar de pé. Ingeri um almoço decente. Neste tipo de instituições, a comida leva pouco sal. Não a desdenho, todavia: faz parte do meu salário. Amanhã, folgo. Ando nisto-assim-assim. Arredia de mim anda a versalhada de outras fases. Tal não me inquieta. Trabalho de momento (em) outras coisas.

 

48

 

O século anterior não aniquilou a Poesia

Mas este corrente (e nosso último, atenção)

Parece prestar-se a tal electrorruína bem.

 

Não sou de nostalgias difíceis, acho

Só as fáceis me encantam como fácies

Digo isto assim por ser do século anterior.

 

Assisto sem abrir a boca ao circo humano

Não choro nem me rio, assisto & passo

Tudo parece remediado de tão sem-remédio.

 

É de tradição, dizem, envelhecer mal & depressa

(E sem ter lido o Camilo todo & todo o Eça)

É capaz de; é muito capaz de; parágrafo estrófico.

 

O meu século cheira-me a último, isso sim

Tenho doente uma pessoa amada – e consanguínea

Resido discretamente em cromagnonismo.

 

Mais tarde, cearei a sós ante a TV congelimicroondas

Ração medida à dose, imbecis de néon

Não posso uma família? Mas andarilhar posso.

 

Com quem falar de quê-quem-para-quê?

Almejo (ou alvejo) alguma conversadoria

Entre a alva anoitecida & a noite feita dia.

 

Tenho-me volvido em figura-de-tela-Hopper

Frequento os falcões da noite, as leitarias

Entre as alvas anoitecidas & as noites feitas dias.

 

Falam a meu lado de uma traição conjugal

Dizem que a mulher o encornou, que não há dúvida

Moravam na vivend’amarela, ele saiu de casa.

 

Restos, rastos & rostos tristes, bem feitas as contas

Grassa por aí muita infelicidade comezinha

E se jantássemos fora hoje, fôramos normais?

 

E quando o Universo parece feito só de segundas-feiras?

Quando envelheceis raspando uma barba inútil?

Sim: e quando-em-vez-de-enquanto?

 

Falo-Vos de uma galáxia sem segredos

A nossa humanidade cheira a ratos

Poupamos migalhas, a morte vem de trigo-roxo.

 

Esta noite, quê?, sem quem?, olha, calma

(Sei que há só serotonina & nada d’alma)

Esta noite janto fora, foi-se-me deitar a sombra.

 


 

49

 

Com literatura vou escorando as fendas vácuas que fazem perigar a muralha da minha vida. Junho chegou hoje, era um mês que eu em menino amava. Já menino não sou. Nem tu, meu bom Delfim. Muitos são os junhos que (com)sumimos já, desconhecendo nós ambos quantos (se alguns) nos restam. A violência é quotidiana. As notícias, de plástico. A boa literatura, não, antes pelo contrário. Com ela vou escorando / etc.

 

50

 

Chuviscos aleatórios desde manhã cedo, a quarta do corrente Junho. Anteontem, surto psicótico de um (ex-)co-inquilino da casa: portas, janelas, mesas, espelho destruídos. O rapaz foi entregar-se à polícia, levando consigo a faca-do-pão. Internamento psiquiátrico compulsivo. Pena do rapaz, Hermínio sente. Os pais, já defuntos; irmão & irmã não lhe falam nem querem saber dele. Sozinho-na-vida – e sem armas nem bagagens para esta. Um turno mais, hoje, das 16 às 24h00m. Ganhar o dia, poucos embora os cêntimos, consola-se Hermínio, prag(ueja)mático.  

 

51

 

Incerteza certa, há que contar com ela.

Contar com ela – e, também, contá-la.

Dar-lhe certidão d’ocasião – e d’ela-por-ela.

E que escrita fique, não subindo ela à fala.

 

52

 

Hermínio deita-se no quarto violado.

Sudários pobres, azul a manta-cama.

Estende o corpo macerado de andarilhança.

O dia foi suficiente, alimentou & digeriu.

Desperta pela alva de pombas arruinadas.

(Digo: as pombas da defronte casa-em-ruínas.)

Atira arroz a essas aves livres & vorazes.

É como que brincadeira d’entre rapazes.

 

(53)

 

(Fala-me, Delfim, desses teus dias.

Quero saber que luz seguem deitando.

Embala-me, enfim, de litanias

& melopeias que é doce ir escutando.)


 

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Canzoada Assaltante