19/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 371 a 374

© DA.


371

Terça-feira,
18 de Maio de 2021


    “É preciso ter cuidado com os fantasmas e as recordações.”
        [Fala de Esther in O Silêncio (Tystnaden, 1963), de Ingmar Bergman.]

    João Paulo Santana Vidago, do conimbricense Arco Pintado para a abastada vizinhança londrina chamada Belgravia.
    É uma das formigas invisíveis (mas visíveis nas CCTV da orwelliana modernidade – mas de novo invisíveis, pois despojadas de qualquer individualidade).
    Mas só o indivíduo conta, só ele tem a própria vida nos próprios braços, ele é de todo irrelevante para a massa, o todo é sempre maior do que a soma das suas partes, o silêncio é sempre mais retórico do que a vozearia, a algaraviada, o arabesco ruidoso dos rebanhos em consueta consumição/consumpção, digo isto assim com ou sem razão, sou afinal individual como toda a gente é mas um(a) só de cada vez.
    Quanto à citação do filme de Bergman, sempre V. digo que não há ou não vem um só dia em que me não ocorra similar (& lapidar) caução. (Ou precaução, se preferirdes.) Vi, alta madrugada, tal filme. A mensagem contínua do indivíduo-Ingmar tem-se esclarecido, mais & mais, com o rolar das décadas. A película é um ano mais velha do que eu. Prestei a devida atenção: às duas mulheres (talvez uma só, mas fendida), ao menino (de novo Ingmar, que é também as mulheres), ao velho serviçal que traz na carteira fotografias mortuário-familiares – e à Língua-Inventada com que o criador intensificou o silêncio que a todos nos põe em incomunicação. Tudo isto é preciso, tudo isto é precioso – para mim, que por Vós não falo. E esta é a ruidosa maneira que uso para calar-me.

372

    Em estado permanente de autopurga: assim vive cada espécie. A humana não tinha de (nem como) ser excepção a esta constante-natural. A única eternidade hoje (Terça-feira-18-de-Maio-de-2021) concebível: reinício non-stop de cada fim.
    O general condecorado-prestigiado-herói é obrigado a suicidar-se para salvar a honra & a família. Já aconteceu, volta a acontecer quando tiver de ser. Lobo & cordeiro: moeda-única.
    Moro neste quarto de zona alta. O vento trabalha por aqui em espécie de esfuziante alegria. De noite, recuperei aquele instante de epifania em que a roupa posta a secar ganhou diferenciação sexuada: a intimidade feminina ao sol, perturbadora revelação de a humanidade ser afinal duas.
    Por não exercer qualquer ofício anestésico, sobra-me tempo para pensar de mais. Em meu domingo-perpétuo, sinto nostalgia dos sábados & das quartas-feiras. O mesmo tipo de dieta mental é seguido por um George Andrew Pimlico-Percival, com quem me correspondo à antiga, digo: por carta-papel-postal. Por ele não saber Português, retroverto a Inglês como posso a minha portuguesidade pessoal. Em troca, aprendo coisas britânicas de boa minúcia pró-literária. Por exemplo: comparamos pessoas nossas avoengas. É assim que sei que o materAvô dele era de Sheffield; e o paterAvô, de Nottingham (como também Alan Sillitoe, bom escritor).
    Em Saint-Nazaire, o estivador Jules vai ao Café telefonar para casa. Em Singapura, Lai atende ao postigo o cliente que vem a laranjas & ópio. Em Coventry, o imigrante Isaías dá de si as últimas, tiveram de procurar à pressa um sacerdote católico para ministério da extrema-(p)unção. Atenas: um velho cego & a filha passeiam num azul que ele sente na pele do rosto. Tóquio: Michihiro compra doces à filha, Shino. A rivalidade Gladstone/Disraeli é hoje tema de palestra no Café Madrid, 21h30m, entrada-livre, televisor desligado, favor silenciar telemóvel. (Palestrante: Professor Winston Blake, de Oxford, a convite do Reitor da Universidade de Coimbra.) No Pacífico-Sul, cada ilha é cenário da guerra-de-desgaste.
    Outras palavras da AutoPurga: trincheira, perseguição, campanha, selva, informação, destino, desequilíbrio, história, decisão, marco, conquista, táctica, deliberação, frente, abastecimento, hemisfério, recurso, mentalidade, arquipélago, armada, crença, cobertura, aliança, número, dúvida, mapa, base, deslocação, guarnição, objectivo, recuperação, noite, matéria, afirmação, divisão, lucro, combate, oposição, interdição, litoral, velocidade, paciência, dia-hora-minuto-ordem, código, insulação, moderação, estandarte, bandeira, cerimónia, segredo, corrupção, cultivo, exposição, hermenêutica, instrução, destreza, escala, grafia, horizonte, poesia, comida, problemática, matemática, metalurgia, operação, traição, ponto, resultado.

373

Vive-se em uma calendária dimensão
Mas em outra se pensa, de que se sente
O desígnio diversa & a diversa pulsação:
Não esta do momento ou desta gente.
Falo só por mim, enfim.
Não tenho ciência a dar.
Onde posso, é jardim.
Onde não, andar-andar.
Não considero remediável o humano.
Milénios a mais, de mais os enterros.
Antes assim: antes cinza que guano.
Em diverso plano – bem mais prosaico –
Não ligo ao recente o que ligo ao arcaico.
Estudo sem cimento de futuro.
Razões há p’ra tudo por nada.
Não há escapatória, estou disso seguro.
Há só dia-a-dia, jornada a jornada.

374

Conciliábulo de homens em cave de vivenda próspera.
É conventículo de planeamento para o que resta de ano.
Preside ao conluio o mais velho – e mais abastado também.
Pertence-lhe a casa, como os outros o sentem de si mesmos.
É um poder ancestral, atávico, o deste homem po(n)deroso.
Tem por fundo uma heráldica naturalizada, consuetudinária.
Às onze da noite, estão falados, dispersam-se na bruma.
A bruma sobe do rio, devassa salgueirais & canaviais, toma o bairro:
é como se um gigante deitado fumasse mirando o firmamento.
Não sou um destes homens: sou outro pois que (os) escrevo.

E todavia também pertenci a um clã, tribo, grei, ádua. Não mais.
Ou pensei tão-só pertencer, a aparência de tal roçando apenas.
Depressa me vi a sós na eira ao sol total do tempo que me desconta.
Assim vi & sei todos os outros, de nada serve disfarçar(mos).
Em uma vivenda similar àquela daquele sinédrio vivi & dormi.
O poder da juventude fazia-me poder bem mais que meros versos.
Coxeava-me porém já certa propensão para a descrença.
Devo ter intuído, demasiado cedo talvez, a vanidade de quase tudo.
Salvam-se ’inda certa paleta de limoeiro em quintal, alguma criança,
algum cão leal como a Lua à sua nua órbita irremediável.

Como em sonhos perclusos a mente se vê quieta & victa.
Como em palavras percucientes saldamos alguma dívida moral.
Livrar-nos-á da morte a morte mesma, que livramento é.
Planeemos ainda assim o que resta de ano, se restarmos nós.
Suavemente invejemos os simples-de-espírito & seu pútrido reino.
E de conta nunca percamos quem bem deveras mais padece.
Devo ainda dizer-Vos sentidos que só cada um pode apontar-se?
Fios que só cada um pode fiar-se? Ensinar o quê a quem?
Aquele homem lá de cima, o do concílio, escuta mais que diz.
E em tal é refinado mestre, e como tal é escutado & seguido.

Eu tenho mais que desfazer.
Nem a meu espelho a direito pertenço.
Não esmolo, não venero, não queimo incenso.
E o que não vi, sempre cá estou para ver.

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Canzoada Assaltante