24/11/2019

CADERNETA PRETA - 7




7. Nem Parecem Mortíferas as Sombras

a) Quinta-feira, 31 de Outubro de 2019



Em sossego atento, escutando a Carlos Fuentes, o descomunal mexicano de superlativas elegância & sabedoria-em-prática. Aproveito muito, enquanto chove no mundo local. Sinto-me gratificado por esta invernosa despedida de Outubro. Tirando a tosse cavernosa, estou bem na hora. Por o tempo destas linhas, não saí ainda de casa. Tenho de fazê-lo hoje, sem mais procrastinação. Prédio afora, terei tanto de reencontro quanto de achamento – já o sei.
À cautela, raspei ontem à noite a pilosa queixada. Subirei na vertical ao duche, daqui a um par de hora, para fruir a chuva domesticada.
Fuentes elabora, redivivo. Nomes & lances manam daquela consciência tão clara. Monstro da literatura duradoura – e dura de ouro.

(Tusso até me subir à boca o coração.)

Sempre saí, chuviscava, não achei frio nem frio me achei. Resolvi duas coisas, duas outras ficam esperando-me no porvir, se vier.

Revi parciais do meu mundo, de que constam operários em fim de jornada, vêm dessedentar-se ao bebedouro de pobres que há anos nidifico.

Poalha, a moinha toma tudo.
Relapsa a nostalgia p’la Cidade.
Idêntica idade, identidade
apõe a todos-os-santos ao entrudo.

Achegam-se os mais velhos à lareira,
em funcho há castanha em cozedura.
A dor dos outros é sempre futura.
‘manhã vamos de barco à Figueira.

Tardia, a comoção já nos não leva
pela mãozinha dócil de manteiga.
Tardia é a alegria. A dor, primeva.
Envelhecer é coisa nada meiga.

Morreu Dias (José), fui dele amigo,
nove dias depois só mo disseram.
O q’escrevi com ele, não escreveram
os ensimesmados a sós consigo.

Um triste (de bigode rarefeito)
pede fiado ao amo bebedouro:
este lhe serve cálix morredouro,
aquele rechupa sede pelo peito.

Ser testemunha antiga sem mais fala
q’a da avó mais velha analfabeta
– ser deposta boca de quem se cala,
       matina q’a noite faz obsoleta.

       O Sílvio (contas certas) não obriga
       quem de fora lhe vem por a visita.
O Álvaro Martinho traz cantiga
que à força do passado revisita.



b) Sábado, 2 de Novembro de 2019



Sinto a infiltração da idade – e nem sempre por algum mote negativo. Mesmo ante as contrariedades devindas que, activa ou passivamente, engendrei eu mesmo – mesmo ante essas (con)sequências, encolho bastas vezes os ombros & assobio enquanto sigo o(s) meu(s) (des)caminho(s).
Falo com & para mui pouca gente-gente. Nos sonhos, por igual, sou mais ouvinte do que falante. Tenho sonhado muito. Acordo sempre algo aturdido pela lógica implacável desse universo-alternativo da nebulosa-cerebral. Esqueço rapidamente as peripécias. Não são pesadelos nem jardins, os filmes que sonho. São outra roupa num corpo diverso. Nem menino nem senil, é como se tivesse experimentado uma espécie de eternidade limitada ao stock existente. Já acordado, sacudo o pêlo, bebo água da garrafa á cabeceira, fumo se tiver à mão, iço-me para a hora nova. Mudo, as mais vezes. Surdo, não. Há cantos da casa mais propícios à música. Não telefono nem me telefonam. Está tudo bem – responderia eu se mo perguntassem. Ainda bem, porém, que mo não perguntam, escuso de aldrabar, seja quem (não) for.

Mercê de curiosidade selectiva, vou (col)matando a pouca conversação: interesso-me por papéis vivos, linhas vivas, imagens capazes de vergar o Tempo em espirais alternativas. Um duplo-homicídio na Irlanda, ano 1921. Um sêxtuplo (salvo erro) em miseráveis subúrbios de Glasgow, acho que em 1984. O andrógino Rapaz Jorge em 1981. Correrias em Munique nas décadas 20 & 30 do XX. É corrupio-de-pandora, por assim dizer. Dou de comer ao lápis, tinta por vezes. À dor, nem tanto.

Em povoação tomada de invernia, pela noite, é ainda possível ambular sem prejuízo do mundo. É além a casa do Ambulante. Por ter de manhã cedo azeitado as juntas do portão, o ferro não chia. Em surdina, o rádio rastilha valsas. No lar, o brasido remanescente pede reforço de provisão. O cão, muito velho, abre um olho, boceja, quase dá ao rabo uma voluta de boa-vinda. A mesa expõe tesouros da horta, do mar & da serra: cebolas, bacalhau, queijo. A cafeteira azul, uma vez reanimado o lume, já mana perfume. Da rede-mosquiteira suspensa, toucinho salgado & manteiga abordam a mesa. A luz é cediça. Ergue-se vento no pátio, fremem no pomar as macieiras. O noticiário da radiofonia reporta a um exterior demasiado longínquo (felizmente). Jornais antigos esperam a enésima releitura. Hoje, porém, talvez não. Agora, a doçura mela os olhos. A poltrona, a prudente meia-distância da lenha viva, serve de placenta. As valsas voltam. Fios rarefeitos de sentido medusam pela mente já só semiciente. Estraleja o pinho, casado com o pedaço de oliveira no altar ígneo. Nem lembrança nem espera. Nem espera nem lembrança.

Truz-truz.
Da casa, ó senhor!
Quem luz?
Senhoria, é Leonor!
Entra pois, Leonorita,
entra e toma tu assento.
Entro sim, só um momento:
venho lá da Dona Rita.
E que me quer a boa Rita?
Pois é isso, já vos não quer.
Que me dizes, Leonorita?
Já lhe não vem por mulher…

Ao contrário dos católicos, vivo de desaparições. Não há nisto gravidade. Graves deveras, são raras as coisas. E as coisas apresentam-se duramente concatenadas. Se um ror de palavras me pede alinhamento, sou grato. A mocidade foi. E não volta. Não é natura dela. Chegou, morou por aqui um bocadito – e pôs-se nas putas, bem fez ela. Em o lugar dela, range ossos certa condição que não é ela, é outra coisa, conspícua recolecção, lentidão agravada, não outra pessoa mas menos pessoas nessa pessoa. Força-se aqui – mas sem desespero – um ensaio de matrícula na noção compreensiva. Versos muito mais felizes já o terão eventualmente logrado – não importa. Ou: não me importa. Importa-me, isso sim, muito sim, a palavra-justa (assim com hífen para substantivar foros de, precisamente, justa-posição). Ela é por-si, consigo, em-si – vida melhorada. E não só livros habita. Bocas que pelo mundo não escrevem – também dela são capazes. Tenho recolhido muitas, que em solidão frúo na ciência antecipada de comigo as não poder levar lá para onde foram os que já não podem ler. Posso deixá-las, isso sim, posso. Mais digo: todos os meus anos falantes são mormente ouvintes. Entre eles, deles, faço de secretário.
Vou à janel’alta da sala, miro a obra da noite neste trecho do mundo. Atrás de mim, nem cão nem lareira, nem rádio valsante nem pomar de macieiras – mas.
Mas pontilhada a ouro é a tela que se me abre à janela alta. A hora evacuou as vias, nem parecem mortíferas as sombras. A colmeia humana aceita o anoitecimento, milénios de resignação são imperiosa escola. Sinto em palavra o recolhimento. Nem demência nem euforia. Nem baile, felizmente.
Atrás de mim, esparsos móveis dão de si, emitem acústicas mínimas. Roupa-de-cama faz de mãe. Restos de refeição já arqueológicos, assinatura da hora perdida.
Sim, há justiça no caos – até cortesia, digo. Não mais forjarei um sentido – sequer alguma porta.
Certa vez (que esta noite demonstra improvável), a uma mesa jantando em companhia de outros oito filhos-de-suas-mães, calei-me mais que de costume. Penso que se celebrava uma notícia de noivado. Fumei no quintal. Os carros visitantes afocinhavam o pinhal d’em-torno. Talvez o mote do jantar não fosse noivado. Pode até ser que fosse alegria de recém-divórcio. Antigamente, havia certo pudor. Agora, parece ser razão de júbilo. Depende, se calhar. Comia-se, enfim. Aquela assembleia não era especialmente bebedora, pelo que mais me restou. Voltei ao quintal a pretexto de outro cigarro, trouxe comigo a botelha de conhaque, sentei-me numa pedra trabalhada, recebi da Lua o clarão hipnótico. Essa gente (e a mocidade dela) já não é. Sumiu-se na natura de sua via, eu na minha. O conhaque era bom, era um heterónimo da seda, o fresco da exposição fez-me bem. Todavia, também me não demorei. Agradeci boleia até à gare, esperei menos de uma hora pelo comboio. Então, ardendo de prata, os arrozais emoldurados desfilaram. Pensei logo em um dia escrever isto no pretérito – o que ora se faz presente, amanhã não.

Outra coisa: a morte como hoje-perpétuo. Perpétuo até que o planeta se desfaça, depois disso o Nada Maiúsculo Sideral. Adeus, sentimento; adeus, pobreza; adeus, nossa casa.
Todos temos alguns já. Quietíssimos viajantes, amados nossos que de nós amor não urgem. Impermeáveis à febre, à geografia, à fortunam ao carnaval erótico – e à infâmia chamada Religião. Afortunados afinal, portanto.
Raspa-nos – não a eles já – o sal dos anos. Temos visto cegamente tanta coisa. Fendemo-nos, ofendemo-nos – mas pouco nos defendemos da malevolência consuetudinária. Nunca é o melhor dia para que finalmente alguma coisa etc.

Mutilados – menos do corpo do que doutra coisa. Cada vez mais fácil, topá-los. Um Eduardo entre eles. Conversei com ele algumas vezes. Se tinha alguma coisa, partilhava: pão como vinho, velha ceia. Ou deus frugal. Luís, outro que tal. Valdemar, filho de Sofia Sirius. Ernesto Calendas, há muito falecido. Sepultados na vala municipal. António Polícia, mais amigo de cães que da vida. Pepe Célere, famélico, imparável, colhido pelo exacto comboio em que vinha Filinto Prates, o poeta de Memória Corrupta e de Peregrina Imitação.
De mutiladas, sei menos. Não que as haja menos. Menor é tão-só o meu conhecimento. A franqueza suporta este parágrafo. Maria Irlanda, eis uma. Nos melhores anos, alourava o derredor de si. Manipulava, qual grão-mestre xadrezista, pessoas, situações, negócios, influências. Uma manhã de Maio, acabou. Junho nada repôs. Encostou-se ao tudo o que viesse por nada que fosse. Não vou explicar tudo. Não sei tudo – mas sei mais do que não digo. Maria Irlanda, era uma vez. Mutilada, mortífera sombra.  

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Canzoada Assaltante