17/11/2019

CADERNETA PRETA - 5






5. Vagas Ondas

Sábado, 26 de Outubro de 2019



Prostração viral. Xarope antitússico & pastilhas coiso. Canalização respiratória rumorosa, nariz pingão de aguadilhas mucosas, lenços-de-papel enxugando quanto podem. Ossos & fibras alquebrados como gravetos pisados.
Resisto mercê de versos de Garrett, o Garrett já mais maduro de Flores sem Fruto. Lentidão de essência. Sol no mundo local, é claro o sábado, não sairei hoje do tugúrio, não ’inda. Se o amanhã contar comigo para o cromo-de-caderneta, veremos. Segunda-feira sim, será dia de saída. Correios, barbeiro, antiquário, voltas pelo labirinto simples da Cidade.
Enquanto não, então por aqui. Estar adoentado é interessante. O corpo dedica-se mais ao egoísmo que lhe é próprio, esse solipsismo sem ética, sem justiça, sem treino, sem outro objectivo, para já, que o de chegar vivo a domingo. A mente evola-se. Por exemplo, penso um pouco no argentino Macedonio Fernández. A viuvez dele, a demanda do livro total. Ocorrem-me os também argentinos, e ambos Osvaldo de primeiro nome, Soriano & Bayer. E o obscuro Sábato de O Túnel. Borges, claro. Cortázar principesco, claro. Estes mortos redivivos na minha prostração semideitada em mantas com inclinação angular de almofadões, ao lado o frasco de xarope, a botelha de água morna, restos da ceia de ontem, cigarros quietos uma vez na vida.
Nada precisa de mim, lá fora. Sem sentimento nem ressentimento. Aproveito a quietude. Assimilo listas ao gosto & à guisa do grande Umberto Eco, outro glorioso defunto. Assisti a uma palestra dele na Faculdade, foi lá para os 80s/XX, Saramago também por essa altura e no mesmo sítio, assim como Mário Viegas à frente do Teatro Experimental do Porto. No princípio deste milénio, voltei a estar um pouco com Saramago, já Nobel ele então, foi em Pombal, apresentei-o na Feira do Livro, foi giro, já tudo lá vai.
Para não desconsiderar, por injusto cotejo a Agustina, penso na maravilhosa Yourcenar. A também Marguerite mas Duras não me seduz nem interessa. Li dela alguma coisa, não restou grande coisa – pareceu-me tipo Catherine Millet mas sem tantas piças.
Mulheres por mulheres, curti a Highsmith & a Rendell, entretenimento prazenteiro me propiciaram com suas/delas tramas criminófilas.
Devagar, mais Garrett. Um pouco de Kafka. Laranja espremida. Bolachas. Coze-se carne de vaca, um naco dela, com cebola & sal apenas. Mais logo, feijão-branco. Compota de morango. Mais logo.
O sábado amadurece bem. Em um parque, arvoredo bem tratado jubila ao sol moderado do mês. Pessoas formigam por ali, não muitas. Vai à médica-dermatologista um rapaz com vermelhidão suspeita em zonas da casca. Incisões certeiras expulsam lipomas de consistência galinácea. Quistos dermoides ou sebáceos. A médica é competente, alivia o maralhal sofredor & sofrido. Cicatrizes mínimas, bom trabalho de costura.
À praia da mente vêm chegando & recolhendo-se mais vagas ondas: a figura trágica de Vítor Baptista predomina. Datas dele: n. 18-X-1948; m. 1-I-1999. A 12 de Fevereiro de 1978, aquela cena dele à procura do brinco depois de marcar o único golo desse Benfica-Sporting. Tenho tudo anotado. A final da Taça de Portugal mais extensa da História: 9 de Julho de 1967, ele muito novo no Vitória de Setúbal, vitória dos sadinos por 3-2 frente à excelente Académica dessa década. A degradação de V.B. (“o Maior”): álcool, gajas, droga, furtos, prisão, morte ao raiar de ’99. Em paz, finalmente, já vinte anos se queimaram ao sol. Foi o nosso George Best, dúvida nenhuma.
Costumeiras convulsões na América do Sul. Afeganistão. Hong Kong. Síria. O Diabo-a-4-pintado-a-7. Parece haver vietnamitas no tal camião-frigorífico-cadafalso no Reino Unido. Chile, problemas & pedradas. Iraque, sessenta mortos em dois dias. Barcelona, inquietação. Marselha, lixeira fanático-religiosa a-céu-aberto.
Aqui, não. Tusso, espirro, escarro, fungo, lenços-de-papel sanita a baixo: o corpo diverte-se. Mas a mente também – paralelismos ocorrem-me: Victoria Ocampo / Natália Correia; Woody Allen / Luiz Pacheco; e sim, definitiva geminação George Best / Vítor Baptista. Inócuo divertimento, que entretém o momento.
Também: clássica é toda a obra pretérita que logra manter-se actual. Neste sentido, recebo sempre Sófocles como novidade. Idem-aspas quanto a Faulkner, Goya, Paredes, Beckett.
Mais dois nomes que brilham nesta caderneta: o coronel John Bevan & o agente-duplo Juan Pujol. Clássicos eles também, por outras vias.
O sábado, de si mesmo viajante, abocou a noite. Já esta exerce seu magistério terraplenador. Desta casa quieta como a esta quieta casa partem & chegam motivos carregados de essência como de ouro líquido as jóias a que chamamos laranjas. Cais da Rocha do Conde d’Óbidos, Pas de Calais, Dover, Angra do Heroísmo. Abwehr, MI5, Securitate, Stasi.  

Sem comentários:

Canzoada Assaltante